Uma análise sobre a imparcialidade judicial e sua relação com a teoria da dissonância cognitiva
Simone de Sá Rosa Figueirêdo 1
Vanessa Viana de Melo Wu 2
1 Mestra e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Graduação, Especialização e Mestrado em Direito da Faculdade Damas da Instrução Cristã. Professora de graduação em Medicina da Uninassau/Recife. Nos últimos 12 meses, publicou três artigos científicos em Revista com Qualis A1, um artigo científico em Revista com Qualis A2 e um artigo científico com Qualis B1, além de um livro pela Editora D’Plácido. Para mais informações, acessar currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0381163581576752. Filiação: Universidade Federal de Pernambuco e Faculdade Damas da Intsrução Cristã. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6964-7310. E-mail: simonedesarf@yahoo.com.br .
2 Graduada em Psicologia pela Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE. Pós- graduanda em direito penal e processo penal na Faculdade Damas - RECIFE/PE. Graduada em Direito pela Faculdade Damas - RECIFE/PE. Filiação: Faculdade Damas da Instrução Cristã. ORCID https://orcid.org/0000-0003-2615-9944. E-mail: vanessa.vmwu@gmail.com.
Resumo
Este trabalho objetiva examinar a impossibilidade de aplicação plena do princípio da imparcialidade ao direito processual brasileiro, com base nas pesquisas da teoria da dissonância cognitiva. Para melhor compreensão do tema, a pesquisa trata primeiramente sobre a teoria da dissonância cognitiva e os motivos que impossibilitam a imparcialidade do juiz na dialética do sistema processual penal. Posteriormente analisa a tomada de decisão e a dinamicidade como mecanismo de interação humana, esclarecendo como as escolhas a nível inconsciente afetam o processo decisório. Ao final, a partir do substrato teórico trabalhado, a imparcialidade como exigência para a tomada de decisão à luz da teoria da dissonância cognitiva é defendida. O artigo utiliza metodologia descritiva, de natureza qualitativa. Por meio de uma pesquisa bibliográfica exploratória, apresenta reflexões sobre a imparcialidade do julgador na perspectiva normativa e prática, concluindo que há desconformidade entre as expectativas normativas e a ordem prática, o que acarreta prejuízos significativos ao sistema processual penal.
Descritores: Imparcialidade; Teoria da Dissonância Cognitiva; Tomada de decisão; Processo Penal.
Introdução
O presente texto visa trazer à baila reflexão acerca da imparcialidade judicial a partir da avaliação da figura do juiz consciente, que procura de toda forma se manter afastado dos sujeitos processuais, assumindo a postura de um terceiro imparcial, com o objetivo de não privilegiar nenhuma das partes durante o processo.
A imparcialidade judicial é princípio constitucional basilar do sistema processual penal. Visa garantir a distância entre o julgador, as partes e os elementos do processo, a fim de garantir condução com o máximo de isenção possível. Além de garantia constitucional, a
imparcialidade do juiz determina a validade do processo, se afigurando como pressuposto para justiça da decisão.
Entretanto, o objeto desta pesquisa enfrenta um problema que conflita com a condição humana, pois é comprovadamente impossível que o juiz lide de forma absolutamente neutra ao decidir casos concretos, posto que, por sua condição, mesmo de maneira inconsciente, são acionadas todas as suas experiências, vivências, valores, crenças e ideologias de vida no caso concreto, tornando utópico um julgamento plenamente adstrito à aplicação de normas.
Nesta conjuntura, a prática vigente, limitada pela Constituição Federal, fomenta importante discussão acerca do conflito existente entre o princípio da imparcialidade e a viabilidade do magistrado, que na condição de ser humano, esteja apto a concretizá-lo, considerando a existência de um arcabouço pessoal de pré-julgamentos, em razão da indissociável opinião pessoal definida sobre princípios e valores que inevitavelmente vêm a interferir sobre os casos concretos, conforme a Teoria da Dissonância Cognitiva, abordada pela Psicologia Cognitiva Comportamental.
Para analisar a discussão apontada no parágrafo anterior o presente estudo utiliza a metodologia descritiva, de natureza qualitativa através de uma pesquisa bibliográfica, com método dedutivo, por meio de uma pesquisa exploratória para trazer conclusões acerca da imparcialidade do julgador na perspectiva normativa, bem como a compreensão dos institutos que a circundam, e a possibilidade de executar esse princípio dentro do sistema penal brasileiro.
A pesquisa se divide em três capítulos. O primeiro deles aborda os aspectos gerais da exigência de imparcialidade no processo penal, apresentando brevemente os aspectos históricos que influenciaram o sistema utilizado nos tempos atuais, os impactos que os modelos acusatórios e inquisitórios têm sobre nossa cultura até os dias atuais, bem como as principais considerações da imparcialidade como princípio.
O segundo capítulo se propõe a explicar sobre a Teoria da Dissonância Cognitiva criada por um Psicólogo Social, estimulando a necessidade da interdisciplinaridade para compreensão do processo psíquico no que tange aos motivos que impossibilitam a neutralidade do juiz diante de um caso concreto e a correlação subjetiva com a construção técnica da imparcialidade dentro do sistema processual penal, para isso pretende-se trabalhar com alguns doutrinadores que abordam essa temática em suas pesquisas, como falado anteriormente.
O terceiro capítulo adentra na discussão proposta, qual seja, sobre a imparcialidade como exigência para a tomada de decisão à luz da teoria da dissonância cognitiva, apresentando críticas com base nas teorias abordadas nos capítulos anteriores, percorrendo ainda os elementos do Processo Penal que influenciam a tomada de decisão do juiz que, por sua vez, obedeceram aos requisitos constitucionais democráticos e processuais para efetiva garantia dos direitos fundamentais.
Sem a pretensão de esgotar as discussões sobre o tema, a pesquisa conclui que há verdadeiro abismo entre o princípio da imparcialidade e a realidade da tomada das decisões penais. Considera-se que a atribuição dada ao magistrado, que é um ser humano, acrescenta-se a exigência de se despir da sua própria subjetividade quando está no exercício da função a fim de contemplar o princípio da imparcialidade, o que lhe é impossível.
Aspectos gerais da exigência de imparcialidade no processo penal
Compreender os sistemas processuais penais é essencial para entender a função do princípio da imparcialidade no processo. Para além da análise dos principais aspectos desses divergentes modelos processuais, os deslindes encontrados no terreno do processo penal durante a evolução da sociedade, explanados aqui por meio de precedentes históricos, tem o intuito de proporcionar o estímulo à inclusão de aspectos práticos em pesquisas.
A princípio, era comum em comunidades primitivas, a utilização da própria força para
reparação do dano sofrido por algum membro. Com isso, a “justiça” era repleta de elementos tais quais duelos ou a utilização da vingança. Assim, visava-se o bem comum do grupo lesionado. Conforme visto, em um mesmo plano fático era possível ver sujeito, vítima e o juiz. Assim, com o advento da Lei de Talião, o início de um processo começou a nascer. Em outras palavras, uma ação em que enseja um dano causado poder-se-ia respondê-la diante de uma mesma proporção. Segundo o art. 196 “Se um homem destruiu o olho de outro homem, destruirão o seu olho. [...] art. 200 – Se um homem arrancou o dente de outro homem livre igual a ele, arrancarão o seu dente” (Vieira, 2011, p. 89).
À primitiva solução do problema da pena referida e conhecida como lei do talião possui uma raiz tão profunda que ainda não foi completamente eliminada nos ditos povos civilizados. No decorrer dos séculos, tivemos diversas alterações na estrutura do processo penal.
Até meados do século XII prevaleceu o sistema acusatório, e paulatinamente ocorreu uma transição para o modelo inquisitório que se firmou até o final do século XVII (Lopes, 2021).
Antes de progredir, é fundamental compreender a linha tênue e complexa da imparcialidade objetiva e subjetiva do julgador a fim de que se torne evidente o posicionamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) desde 1984 até os dias atuais sobre os limites que norteiam a defesa pela democracia.
Partindo do pressuposto que a palavra “parcialidade” nos remete a um estado psíquico
emocional de envolvimento e a palavra “imparcialidade” reflete a uma situação de que está apartado ou terceirizado. Coutinho (2021) complementa essa premissa afirmando que o sujeito imparcial está mais do que alheio aos interesses das partes na causa, na verdade ele está para além dos interesses delas.
Isto posto, entende-se que imparcialidade objetiva faz menção ao juiz que oferece garantias suficiente para que não se gere dúvidas da sua integridade e postura de alheamento adequado nos seus atos processuais.
Enquanto na imparcialidade subjetiva, aduz ao juiz que age sobre a influência pessoal com o caso concreto, seja por um motivo decorrente de um vínculo adquirido com as partes processuais ou pelos pré-julgamentos inconscientes inscritos no nosso psiquismo sobre nossos conceitos pessoais de valores morais que se revelam no momento da tomada de decisão. (Coutinho, 2021).
Esclarecido que a imparcialidade jurisdicional nada tem a ver com o conceito de neutralidade, faz-se necessário enfatizar de que ausência de neutralidade não implica a necessidade de uma postura ativa no processo, sob pena de incorrer na violação do princípio acusatório, observemos a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos sobre o caso Piersack v. Bélgica que deu origem a distinção entre imparcialidade objetiva versus subjetiva, in verbis:
O Tribunal especifica, em primeiro lugar, o duplo aspecto subjetivo e objetivo com que deve ser analisada a imparcialidade dos Tribunais. Subjetiva em termos de convicção pessoal de determinado juiz em determinado caso. Objetivo na medida em que um juiz oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima sobre a imparcialidade de seu desempenho. Não é suficiente para o juiz agir imparcialmente, mas não deve haver aparência de imparcialidade; “Nesse quesito, até as aparências são importantes”, pois “o que está em jogo é a confiança que os Tribunais devem inspirar aos cidadãos em uma sociedade democrática. (Corte Europeia de Direitos Humanos, 1984, tradução nossa).
Para fins de melhor compreensão, o caso Piersack v. Bélgica[1] consiste em um processo penal em que um cidadão belga apresenta uma reclamação contra a Bélgica por ausência de um "tribunal independente e imparcial estabelecido por lei", no decurso do processo em que esteve envolvido, uma vez que o Presidente do Tribunal que o julgou e condenou por um crime de homicídio, tinha feito parte do Ministério Público na fase de investigação de seu caso.
Portanto, o Sr. Piersack alegou a violação do direito a um julgamento justo, uma vez
que a imparcialidade do tribunal que decidiu sobre o mérito deveria ser questionada.
Em sua petição de 15 de março de 1979 perante a Comissão (nº 8692/1979), o senhor Piersack alegou ter sido vítima de uma violação do artigo 6.1 da Convenção; sustentou que o seu caso não tinha sido apreciado por um "tribunal independente e imparcial estabelecido por lei", uma vez que o Sr. Van de Walle, presidente do tribunal criminal que o condenou, esteve envolvido no caso numa fase anterior, por o cargo de primeiro adjunto do advogado do rei. A Comissão admitiu a demanda em 15 de junho de 1980. Em seu relatório de 13 de maio de 1981 [artigo 31 da Convenção (RCL 1979, 2421 e ApNDL 3627)], manifestou sua opinião unânime de que houve violação um dos requisitos do artigo 6.1, especificamente a imparcialidade do tribunal. (Tradução nossa).
A Corte concluiu que as circunstâncias descritas acima foram suficientes para suscitar dúvidas razoáveis sobre as garantias de imparcialidade exigidas tanto pelo artigo 6.1 da Convenção quanto pelo princípio geral do direito a um exame imparcial de litígios pelos Tribunais.
O Tribunal também afirmou que ambas as normas obrigam os juízes a abster-se de participar de uma decisão se houver motivos legítimos para duvidar das garantias de imparcialidade a que o acusado tem direito, resultando, desta forma, em uma decisão unânime do Tribunal de ter havido violação do artigo 6.1 do contrato supramencionado.
Desde este caso emblemático, adverte-se sobre a importante distinção entre a imparcialidade objetiva e subjetiva acima mencionadas e traz uma terceira reflexão que diz respeito a preocupação do mesmo Tribunal sobre a “aparência de imparcialidade”.
De acordo com Martins (2019), o discernimento entre viés objetivo e subjetivo da imparcialidade do magistrado só foi possível porque o debate sobre este tema é extremamente rico e amplo no âmbito internacional.
Isto significa dizer que foi constatado que a proteção da imparcialidade subjetiva ainda não é suficiente, tendo em vista que em cada caso concreto haverá insegurança nas instituições se o juiz, de fato, decidiu com pleno alheamento.
Quando falamos na função do magistrado dentro do Processo Penal, é inevitável observar que este ofício emana um sentimento social de poder e status perante a sociedade. Por esta razão, constitui-se indispensável explorar e ponderar sobre os limites e de que forma a condição inata da predisposição humana de inclinar-se a uma posição de autoridade pode reverberar negativamente na estrutura processual penal.
Afinal, o que se pretende, através da instrumentalidade constitucional democrática é proteger o sistema processual penal almejando impedir, ou ao menos, exercer uma política de redução de danos no que concerne aos excessos praticados por parte do poder estatal.
No aspecto técnico processual penal não podemos esquecer de quem o magistrado está à serviço, isto é, é necessário trazer à tona o princípio do juiz natural que elenca os preceitos fundamentais que este está compelido a exercer.
No rol que estabelece a tríplice função do juiz natural, estão inseridos: a impossibilidade de juízos ou tribunais de exceção, sob pena de ferir o art. 5°, XXXVII da Constituição Federal; vedação de julgamento após o fato, principalmente no que diz respeito ao impedimento de retroagir para prejudicar o réu, e a subordinação à impraticabilidade de ação discricionária quanto a ordem de competência entre os juízes pré-constituídos, inexistindo, deste modo, qualquer tipo de cenário excepcional de possibilidade de escolha.
É importante nesse sentido serem citadas as chamadas “garantias orgânicas”, que são voltadas para uma independência, isto é, um juiz natural, que seja capaz de desempenhar sua função de garantidor no processo penal sem se deixar afetar por manipulações externas de cunho político, entre outros.
Naturalmente que não está se buscando algo impossível, que seria um juiz neutro. No entanto, faz-se imprescindível que o magistrado seja capaz de formar sua livre convicção. Liberdade no sentido de que o juiz deve ter por obrigação de não tomar uma decisão baseada em um desejo de uma maioria, assim como não deve sucumbir às pressões políticas, vez que a sua legitimidade está limitada à sua atuação constitucional.
Para isso, é indispensável relatar as supramencionadas funções denominadas de
“garantias orgânicas da magistratura” que são estipuladas por Luigi Ferrajoli (1997 apud Lopes, 2019, p. 63) que define tal instituto como inerente à formação do juiz, no tocante às suas atribuições e funções nas relações com os demais poderes.
Diante deste aspecto o autor busca tratar da independência, imparcialidade, responsabilidade, separação entre juiz e acusação, juiz natural e entre outros requisitos igualmente importantes, diferenciando as garantias processuais para as garantias orgânicas, que são necessárias para a formação do processo, tais como coleta de prova, exercício do direito da defesa, contraditório, onde todos são igualmente essenciais e imprescindíveis para a resolução do julgador.
Seguindo esta lógica, resta clarividente o elo entre os pressupostos elencados no princípio do juiz natural e as garantias orgânicas da magistratura (Ferrajoli, 1997 apud Lopes,
2019), visto que ambos os institutos têm o dever legal de atuar como “garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal.” (LOPES, 2021, p. 72).
É indispensável esclarecer que a independência do magistrado deve obediência absoluta às garantias fundamentais e que apresente motivação legítima, estando o juiz restrito a decidir em conformidade pelos preceitos da atividade jurisdicional.
Contudo, a existência da garantia da jurisdição não é satisfatória, pois a necessidade vai além da existência de um juiz, faz-se necessário ter alguns requisitos que o tornem apto a exercer o seu papel de garantidor, tais como um juiz natural, imparcial e compromissado com a máxima eficácia da Carta Magna.
Isto implica dizer que embora a atividade do juiz privilegie a garantia dos direitos fundamentais assegurados em um caso concreto, ainda assim este magistrado não pode ser considerado integralmente isento de imparcialidade.
Diante disto, é de extrema relevância refletir sobre a imparcialidade dentro de um contexto que não haja separação de funções de acusador e julgador, bem como avaliar que não tenha claro afastamento da figura do juiz com poderes investigatórios/instrutórios, pois tal exercício se desconecta completamente do sistema acusatório, uma vez que a iniciativa probatória incorre no âmago do sistema inquisitório.
Lopes (2019), relata que desta forma se consagra a figura do juiz-instrutor-inquisidor, eivado de parcialidade, prestes a elaborar uma decisão que apenas reafirme um pré-julgamento, decorrente da ausência do alheamento necessário para fazer a devida valoração da prova.
A consequência é a obstrução do desenvolvimento justo do processo revestido de um estado subjetivo e emocional, isto é, parcialidade. Logo, entende-se que o modelo que se segue desenha um processo inquisitório que infringe as principais garantias jurisdicionais.
Embora não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, o Princípio da Imparcialidade é garantia fundamental e está consagrado na nossa Carta Magna através de artigos que dispõem sobre garantias aos juízes, como forma de assegurar a independência e evitar influências externas em suas decisões, bem como artigos que asseguram às partes serem tratadas com isonomia, entre outros direcionamentos que comprovam o interesse de garantir o máximo de alheamento possível por parte do juiz no exercício de sua atividade jurisdicional.
Ademais, os dispositivos constitucionais afirmam que não bastam apenas a existência de um juiz, faz-se necessário observar os requisitos que compõem o Princípio do Juiz Natural (artigo 5, LIII, CF) que prima pela exclusividade do juiz legalmente para atuar em determinado processo, vedando completamente a criação do tribunal de exceção (art. 5, XXXVII, CF); ressalta que ninguém poderá ser processado e julgado por órgão instituído após o fato, e por fim, impõe um rol taxativo de competência dos juízes com a finalidade de impedir toda e qualquer possibilidade de escolha das partes ou de terceiros (Lopes, 2021).
Além das supramencionadas previsões constitucionais, o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos[2], do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[3] e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[4], que são tratados internacionais, devidamente incorporados à nossa Carta Magna, conforme preconiza o artigo 5º, §3[5], garantem a forma igualitária e julgamento por tribunal independente e imparcial a todo e qualquer ser humano.
4 Artigo 10°: "Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida".
5 Artigo 14: "Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil.
6 Artigo 8: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza".
7 Artigo 5º, § 3º, CF: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
Resta evidente que não se trata de um problema de solução simplória, o que nos leva a realizar uma leitura interdisciplinar, sobretudo no que a psicologia têm a nos oferecer a fim de evitarmos o reducionismo, ou a chamada “estética de imparcialidade” termo usado pelo professor Aury Lopes que significa passar a impressão de que existe um “juiz imparcial”, mas que na realidade houve contaminação do processo através de prévio envolvimento com o caso penal, decretando prisões cautelares na fase pré-processual a título de exemplo, provocando os prejuízos cognitivos aos quais estamos buscando nos distanciarmos.
Não há intenção de obstruir o acesso do juiz aos acontecimentos do mundo dos fatos, posto que seria impossível impedir seu acesso ao que ocorre na vida em sociedade através das redes sociais, mídias, dentre outros diversos meios de comunicação.
Isto posto, é crucial compreender a diferença de uma cognição generalizada para a pretendida originalidade cognitiva[6], que tem como cerne da questão entender que o juiz só deve conhecer dos fatos em termos processuais e probatórios do caso que irá julgar na fase da instrução, jamais antes.
Deste modo, para evitar cair nas inevitáveis teias do inconsciente, deve-se reconhecer que o processo seja de fato imparcial, faz-se, portanto, necessário que o magistrado forme sua convicção através das provas colhidas originariamente no contraditório, sem interferências externas que afetem o processo cognitivo.
Deve-se ter em vista que, compreender a seriedade do tema e o reconhecimento da necessidade de existir uma originalidade cognitiva é um desafio necessário para construir um sistema com condições de conceber um juiz imparcial.
Teoria da dissonância cognitiva
A teoria da dissonância cognitiva foi desenvolvida pelo psicólogo social León Festinger em 1962 e trata de um estudo da cognição e do comportamento humano. Em sua obra, o autor explica que as emoções de angústia, desconforto e/ou ansiedade são provocadas quando há uma inconsistência entre as cognições.
8 A garantia da originalidade cognitiva exige que o juiz criminal – para efetivamente ser juiz e, portanto, imparcial – conheça do caso penal originariamente no processo (na fase processual, na instrução). Deve formar sua convicção pela prova colhida originariamente no contraditório judicial, sem pré-juízos e pré-cognições acerca do objeto do processo. (LOPES, 2021).
A magnitude variará de acordo com a importância e principalmente a discrepância entre as cognições. Uma vez ativada na psiquê do indivíduo, a dissonância cognitiva desencadeia mecanismos psicológicos para mitigá-la ou eliminá-la.
A título de exemplo, o autor traz a situação em que o sujeito é obrigado a fazer um discurso sobre um assunto com o qual discorda veementemente, situação que leva o indivíduo a experimentar um estado psicológico de dissonância.
Diante desta situação desagradável, ele fará o que puder para aliviar o desconforto e retornar à posição consonante. Festinger (1962) ressalta que o desconforto psicológico causado pela dissonância cognitiva motiva o indivíduo a criar mecanismos para restabelecer sua harmonia interior, e que para atingir esse objetivo, procuram acrescentar informações compatíveis às suas crenças e conceitos.
Desta forma, é comum observar mudanças nas atitudes de sujeitos que estão em estado de dissonância e buscam justificativas para sustentar a decisão dissonante. Consequentemente, é bastante comum culpar circunstâncias externas para fazer parecer que o sujeito não teve escolha e foi forçado a agir de tal forma.
A maioria das teorias sobre a tomada de decisão são consistentes com esta perspectiva, defendendo a existência de uma relação positiva entre conflito e tamanho de troca entre os atributos, isto é, quanto maiores são as trocas, mais sacrifícios temos de aceitar ao escolher uma opção em detrimento de outra e, consequentemente, maior é o grau de conflito sentido pelos decisores.
Sob esta perspectiva, Lopes (2014) explica que a teoria da dissonância cognitiva, desenvolvida a partir da psicologia social, analisa na introdução a forma como um indivíduo responde a dois pensamentos, crenças ou opiniões opostas que criariam uma situação de desconforto mental.
Schünemann (2013)[7] faz parte do rol de juristas que contestam as convicções jurídicas da sociedade moderna sobre a neutralidade e imparcialidade tida como infalível, amplamente garantida no direito positivo acerca da instituição do juiz natural.
Em decorrência da vigência prolongada do sistema inquisitório na história cronológica do direito penal, tendo vigorado na Alemanha até o século XIX, atualmente ainda temos um conflito de papéis tanto por parte da ciência processual quanto dos advogados criminalistas, que não raramente, relevam ou até mesmo compactuam com a problemática da cumulação de papéis do magistrado.
9 Bernd Schünemann é um jurista alemão e filósofo jurídico com doutorado em Direito Penal sob a orientação de Claus Roxin.
Sob a perspectiva do autor, o juiz acaba sujeito ao que já foi determinado desde a investigação preliminar, isto é, em uma etapa construída unilateralmente e quase que exclusivamente pela polícia, ressoando, portanto, em pouca, ou quase nula influência de defesa.
Certo de que a visão do magistrado sobre os fatos prevalece o cenário previamente apresentado pela polícia, o autor trabalhou na construção da teoria da informação na década de 80, e que mais tarde, passou a harmonizar com a teoria da dissonância cognitiva, na qual passou a realizar uma série de experiências científicas relatadas em suas obras.
Alicerçado na Teoria da Dissonância Cognitiva, formulada por Festinger, o jurista Schünemman desenvolveu seus experimentos e hipóteses consciente de que toda pessoa procura um equilíbrio em seu sistema cognitivo, isto é, uma relação não contraditória entre seu conhecimento e suas opiniões. No caso de uma dissonância cognitiva, surge para o sujeito um motivo no sentido de reduzi-la e de restaurar a consonância, isto é, de fazer desaparecer as contradições.
Por outro lado, segundo o princípio da busca seletiva de informações, procuram-se, predominantemente, informações que confirmam a hipótese que, em algum momento prévio, fora aceita, ou seja, acolhida pelo psiquismo do sujeito, tratem-se elas de informações consoantes, ou de informações dissonantes, desde que, contudo, sejam facilmente refutáveis, de modo que elas acabem tendo um efeito igualmente confirmador.
Aplicando essas considerações à posição e à função do magistrado alemão, em uma audiência de instrução e julgamento, o jurista entendeu que uma vez que a leitura dos autos faz surgir no juiz uma imagem do fato, é de se supor que, tendencialmente, o juiz a ela se apegará de modo que ele tentará confirmá-la na audiência, isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar as informações dissonantes.
Schünemann apud Lopes Jr. (2021) reitera que os magistrados se respaldam na crença de que a formação profissional constrói o sujeito comprometido com a objetividade. Contudo, o autor revela que o argumento é ingênuo, vez que se desconsidera completamente a influência do inconsciente que atravessa toda a linguagem, inclusive a “razão”.
Partindo da Teoria da Dissonância Cognitiva, o autor pactua com o entendimento de que o sujeito está sempre em busca de encontrar um equilíbrio em seu sistema cognitivo, de forma que reduza as divergências entre a sua opinião e seu discurso e quando diante de duas ideias antagônicas, o psiquismo por contra própria busca inserir elementos consonantes, pois este tem a função de evitar situações desconfortáveis e que gerem estresse ao indivíduo.
O jurista alemão aplicou a Teoria da Dissonância Cognitiva no campo do processo penal, onde constantemente o magistrado precisa lidar com pelo menos duas “opiniões” antagônicas, quais sejam, as teses de acusação e de defesa. Para além destas, mistura-se também a opinião do próprio magistrado, que não raramente encontrará divergências com as duas teses primárias.
Diante desta situação, o autor afirma que quando o juiz constrói uma imagem mental desde os autos do inquérito policial, torna-se inevitável o pré-julgamento, fato que se torna ainda mais danoso quando o juiz decide anteriormente sobre prisão preventiva, entre outros.
As pesquisas desenvolvidas pelo jurista em casos concretos confirmaram que o juiz que atuou na fase pré-processual, apresentou maior tendência a ocupar a posição de parte contrária diante do acusado.
Afirmou ainda o autor que grande parte deste problema vem do costume dos juízes primeiramente ler o inquérito policial para decidir se recebe ou não a denúncia. Isto é, formulando, antecipadamente, uma imagem mental dos fatos para posteriormente entrar na fase que ele chama de “busca por confirmação” das hipóteses previamente elaboradas na instrução.
Por estes mesmos motivos, o magistrado passa a enxergar no promotor a pessoa que
serve como “padrão de orientação”, provocando o que o autor chama de “efeito aliança” que o juiz estabelece ao se orientar pela avaliação realizada pelo promotor.
Uma das constatações feitas por Schünemman apud Lopes Jr. (2021, p. 67) sobre o
tema é a de que o juiz é “um terceiro inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar”.
O autor realiza pesquisas sobre a interdisciplinaridade do processo penal e a psicologia social desde os anos 80 e vêm contribuindo amplamente para a inserção deste conhecimento de importância significativa para a manutenção das garantias processuais na prática processual.
Este pensamento corrobora com os estudos de Ritter (2016), que frente aos processos cognitivo-comportamentais oriundos da tentativa de retomada ao estado de coerência pelo sujeito, dividiu tais mecanismos em quatro. São eles: (1) mudança de elementos cognitivos dissonantes; (2) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes; (3) adição de novos elementos cognitivos dissonantes com a cognição existente; e, (4) evitação ativa do aumento desses elementos dissonantes.
Esses mecanismos implicam dizer que, a fim de manter a crença na sua opinião ou atitude, o sujeito manipula, de modo consciente ou inconsciente, as suas próprias razões, evitando, portanto, o que não o convêm para se convencer de que está certo.
O reconhecimento e estudo profícuo da interferência do inconsciente no processo penal certamente foram significativos para a evolução do processo penal no âmbito brasileiro, posto que os referidos juristas, juntamente com Jacinto Coutinho, foram pioneiros na inserção deste tema em diversos debates, livros e produções acadêmicas.
Rosa apud Ritter (2019) esclarece que é no processo decisório que se manifesta as escolhas realizadas a nível inconsciente, ou até mesmo consciente, dos julgadores após a coleta de informações acerca de um processo. Em decorrência disto, são utilizadas das mais diversas estratégias com o intuito de interferir nas condutas processuais e a subsequente decisão.
Cabe, portanto, ao tomador da decisão, saber discernir quais são as informações substancialmente relevantes capazes de colaborar com sua linha argumentativa, das diversas outras que surgirão apenas com o intuito de macular a consonância cognitiva.
O autor também atenta para o fato de que o ser humano tende a optar naturalmente pelo conforto cognitivo, o que torna o exercício de reconhecimento dos artifícios psíquicos uma atividade verdadeiramente complexa.
Especialmente se tratando de processo penal, em que não raramente a vida do sujeito está em risco, se faz necessário uma maior vigilância às chances de incorrer em erro, haja vista a pluralidade de informações absorvidas pelo julgador, que necessita criar mecanismos hábeis a lidar com o ímpeto de ceder à conveniência psíquica que o levará a recair em uma dissonância cognitiva.
Desta forma, é certo que o processo de tomada de decisão não se esgota no encaixe entre a norma e o fato, pois este método gera uma tomada de decisão estática, impossibilitando de perceber as nuances da intervenção subjetiva que não raramente prejudica a vida de vários acusados.
Por outro lado, quando os mecanismos da interação humana são analisados como parte do processo penal, é possível compreender as peculiaridades das facetas subjetivas da condição humana dentro do caso concreto e julgar com a consciência de que as premissas da decisão se modificam constantemente (Rosa, 2018).
Rosa (2018) explica que a cognição e o comportamento humano possuem vínculo forte o suficiente para observar com mais atenção quais são os fatores externos capazes de alterar a tomada de decisão do magistrado quando diante de novas informações, argumentos, provas, entre tantos outros elementos dinâmicos.
Um argumento novo, quando em dissonância com a cognição pré-existente, leva o magistrado a uma situação de desconforto psíquico e consequentemente este buscará um mecanismo interno que reduza a sua dissonância cognitiva.
Este conflito, na maioria das vezes, leva ao juiz convencer-se de que o correto é a manutenção da premissa obtida primariamente, a fim de manter a consonância cognitiva e evitar novos conflitos inconscientes, fato suficiente para macular toda capacidade de agir de forma imparcial, vez que a informação contrária provoca inquietude e resulta em uma decisão manipulada (Rosa, 2018).
O jurista ensina os pré-conceitos inscritos no inconsciente de cada sujeito, ora magistrado, no caso do responsável pela decisão no processo penal, implica o conjunto de opiniões, crenças, comportamentos e atitudes que este acumulou durante a vida.
A partir do processo de aceitação dos operadores de direito e compreensão da inevitável interferência da cognição psíquica no procedimento processual, torna-se cada vez mais possível perceber uma mudança relevante nos resultados, tal qual preceitua o instituto do juiz das garantias, instituto que apresenta uma aplicação do princípio da imparcialidade de maneira muito mais efetiva do que a que fora praticada até então.
Sobre a imparcialidade como exigência para a tomada de decisão à luz da teoria da dissonância cognitiva
Ao relacionarmos a Teoria da Dissonância Cognitiva da psicologia social para o processo penal, torna-se inevitável falar da originalidade cognitiva, e da importância de sua manutenção no inconsciente do magistrado, condição sine qua non para a preservação da imparcialidade, isto é, mantendo-o como terceiro alheio.
A originalidade cognitiva pode ser mensurada quando o juiz se afasta de todos os elementos que possam causar dissonância com o caso penal. Não pode haver, consciente ou inconscientemente, nenhuma convicção ou julgamento preventivo sobre os fatos (Lopes Júnior; Morais da Rosa, 2018).
A originalidade cognitiva está ontologicamente ligada à ignorância do juiz com o processo, possuindo sua mente limpa de qualquer pré-juízo, pré-compreensão. As partes possuem a gestão da prova, e devem levar ao conhecimento (cognição) do juiz, para que aí sim exerça ser convencimento exteriorizado através de uma decisão, neste passo, pode-se dizer que o juiz jamais terá uma cognição direta com o fato, pois neste caso ele seria vítima, autor ou testemunha, não podendo em nenhum dos casos, julgar.
Assim, é muito claro que a cognição do magistrado deve, necessariamente, advir das provas trazidas pelas partes, e é tão somente este contato que deve ter o juiz com o caso criminoso (Lopes Júnior; Morais da Rosa, 2018).
Ante todo o exposto, faz-se necessária uma breve retrospectiva do presente capítulo, para que possamos tratar com um pouco mais de profundidade esse fenômeno no contexto do processo penal brasileiro.
Tratamos aqui de uma teoria que explicitou claramente a busca involuntária do estado harmônico de consonância (coerência), demonstrando 4 (quatro) elementos principais que o indivíduo desenvolve para eliminar ou reduzir a dissonância cognitiva (incoerência), que muitas vezes permeia o ser humano, principalmente quando precisa tomar uma decisão, tendendo, com base na teoria, a buscar elementos para se convencer de que tomou a decisão certa (Festinger, 1975).
No que concerne à teoria da dissonância cognitiva, vimos através da lição de Festinger (1975) que todo ser humano passa pelo processo inconsciente de buscar estar sempre em estado de consonância sempre que enfrenta situações antagônicas.
Ao trazermos essa condição subjetiva do sujeito para a prática processual penal, conseguimos enxergar mais claramente que a situação de acusação versus defesa, por serem antagônicas, são capazes de gerar um desconforto mental que levará o juiz a acolher inconscientemente um dos lados que lhe foi apresentado.
Isto posto, é indubitável que o juiz que tem contato com o inquérito, desenvolve préjulgamentos fundamentados nas suas próprias inscrições psíquicas que o levaram a decretar prisões e outras medidas cautelares, tornando, desta forma, inevitável a violação do princípio da imparcialidade se este mesmo magistrado proceder atuando na fase processual, por mais que este apresente boa-fé em um nível cognitivo consciente.
Ao acatarmos essa condição, teremos um julgador que já realizou um juízo mental de culpabilidade, desde a decisão pela prisão cautelar, por exemplo, levando-o a aceitação mais confortável e dissonante pela acusação.
Posto que Festinger (1975) citou quatro elementos que direcionam para a eliminação ou redução da dissonância, quais sejam: mudança, desvalorização, adição e evitação dos elementos dissonantes, é evidente que o juiz que já assumiu uma posição pré-processual por um lado, seus mecanismos de defesa continuarão trabalhando de forma a manter que todos os atos subsequentes tenham coerência com a sua primeira decisão, só assim o inconsciente se sentirá confortável em ter evitado a dissonância, quarto elemento.
Ciente de que o nosso psiquismo sempre buscará estes elementos com a finalidade de confirmar nossas próprias hipóteses, jamais contradizê-las, chegamos à conclusão lógica de que dificilmente o juiz fará um grande contraponto a si mesmo e decida absolver um acusado que ele decretou uma prisão cautelar na fase pré-processual, posto que este comportamento reflete a desconfortável dissonância que o inconsciente tanto busca evitar.
Sobre este tema, Martins (2015) afirma que um juiz que já tenha acatado uma hipótese acusatória no inquérito, e por conseguinte se distanciado da possibilidade de terceiro alheio, já aniquilou integralmente o direito fundamental que o sujeito na condição de réu tem de ser julgado por um tribunal imparcial.
Uma vez que ele admitiu anteriormente uma possibilidade acusatória, inconscientemente irá duvidar de todas as hipóteses de tese defensiva, pois o colocaria em uma posição dissonante que o seu psiquismo trabalharia o máximo possível para evitar, a fim de manter preservada a consonância cognitiva.
Por fim, Lopes Jr. (2016) considera a exclusão física do inquérito policial como requisito essencial à manutenção da imparcialidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela constitucionalidade da alteração do juiz das garantias no Código de Processo Penal. A referida decisão foi fruto de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade, quais sejam ADIs nºs 6298, 6299, 6300 e 6305, respectivamente, onde foram determinados prazos para que regulamentos internos e leis sejam adaptados, de forma a viabilizar a implementação do sistema de Juiz das Garantias, nos termos das diretrizes determinadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Conforme as novas regras determinadas pelas ADIs supracitadas, o juiz das garantias deverá atuar apenas na fase do inquérito policial, como um garantidor do controle da legalidade da investigação, bem como dos direitos individuais dos investigados. A partir do momento em que ocorrer o oferecimento da denúncia, a competência é de responsabilidade do juiz da instrução.
Esta medida é entendida como uma evolução em matéria processual penal, posto que o julgador do mérito da causa não teria como ser contaminado pela influência subjetiva pelos elementos produzidos na fase pré-processual. Desta forma, garante-se a paridade de armas e a imparcialidade do julgador que desconheceria completamente das provas que foram produzidas na ausência da defesa e do acusado.
No momento em que se divide a atuação de magistrados em cada fase processual e os elementos entre elas não se conectam, é possível obter o tão buscado princípio da imparcialidade em matéria penal, pois é a única forma de garantir que não haverá influência subjetiva sob a tomada de decisões tomadas pelo juiz que teve o primeiro contato com o caso concreto.
O artigo 155 do Código Penal dispõe que:
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Na própria redação do artigo podemos observar que a prova deve ser produzida em contraditório, isto é, na fase processual.
Lopes Jr. (2014) ensina que a fase pré-processual serve tão somente para gerar atos de investigação, ou seja, aqueles atos que não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese; assim como servem para demonstrar uma probabilidade do fumus comissi delicti e posteriormente, o início da ação penal ou arquivamento do inquérito.
Ciente também de que o inquérito policial possui caráter meramente administrativo, que na maioria das vezes foi realizado isento de contraditório ou defesa do acusado, comprovando que não cabe levar os elementos do inquérito ao processo.
O autor explica também que a prática processual penal brasileira ainda é mais grave quando se trata do tribunal do júri, posto que os jurados julgam com base em qualquer dos elementos que integram os autos, incluindo-se os do inquérito policial. Contudo, após as decisões resultantes das ADIs supracitadas, houve consenso sobre o fato de que o Juiz das garantias não atuará nos casos de competência do Tribunal do Júri, bem como no âmbito de violência doméstica.
É certo que o processo de tomada de decisão dos jurados leigos deve ser revestido de um cuidado para evitar as indesejáveis confusões de fontes cognoscitivas, devendo, portanto, orientar sobre o alcance e a finalidade da prática probatórias realizada no debate perante os jurados (Lopes Jr., 2014).
Ferrajoli (2010, p. 102) explica que o objetivo é alcançar a absoluta originalidade do processo penal, e para tanto, a fase pré-processual deve limitar-se a recolher elementos que sejam úteis para a identificação da probabilidade de fato e autoria em grau que justifique a ação penal, de modo que a coleta de provas sejam atos exclusivos da fase processual, onde haverá todas as garantias ao exercício da jurisdição.
O jurista italiano também ensina que a única prova válida para uma condenação é a “prueba empírica llevada por uma acusación ante um juez imparcial, em um proceso público y contradictorio com la defensa y mediante procedimentos legalmente preestabelecidos”.
A valoração probatória exclusivamente sobre os atos praticados na fase processual garante a originalidade, o que trabalhado conjuntamente com as contribuições da teoria da dissonância cognitiva proporcionará uma tomada de decisão livre de contaminações e consequentemente mais propensa a atender os requisitos do princípio da imparcialidade. (Lopes Jr., 2014).
Portanto, é de suma importância compreendermos que os casos concretos que ocorrem no processo penal vão muito além da ciência do direito, sendo imprescindível o estudo combinado com elementos psicanalíticos, antropológicos e sociológicos, para que evitemos limitar a compreensão das circunstâncias do crime aos olhos do direito penal.
Conclusão
A interdisciplinaridade entre a ciência jurídica e a Psicologia é relevante desde o momento em que foi atribuído ao homem o poder de julgar; tendo, contudo, este mesmo homem, sido incumbido de fazê-lo isento de paixões e desejos.
Este pressuposto é condição fundamental estabelecida nos ordenamentos jurídicos de vários países, vez que o princípio da imparcialidade nos remete a ideia de homem racional, aquele que é capaz de se livrar da sua própria subjetividade quando está no exercício da sua função de juiz.
O propósito fundamental é proporcionar ao sujeito a garantia de ser julgado com o máximo de alheamento possível, o que vimos que não significa obtenção da imparcialidade plena, mas aplicar o máximo possível diante de cada caso concreto.
Após uma breve análise dos modelos processuais penais, restou claro que ainda estamos distantes da obediência à aplicação dos princípios e normas positivadas, o que acaba por resultar em pré-juízos significativos analisados sob o viés psicológico da teoria da dissonância cognitiva sempre que o juiz acumula funções desde a fase pré-processual.
É o próprio ordenamento jurídico que atribui ao homem, ao oferecê-lo a função de magistrado, prerrogativas, privilégios e garantias, como se fosse possível o ser humano escolher se posicionar com imparcialidade, sem desejo e sem paixões, sempre que este considere prudente ou necessário.
Contudo, embora tenha atribuído ao juiz exigências de imparcialidade, o legislador redigiu alguns dispositivos que vedam a atuação do juiz em algumas circunstâncias, prevendo que talvez este não tivesse completa autonomia sobre sua plena racionalidade.
Toda vez que a lei reconhece uma suspeição, recupera-se um pouco da condição humana daquele juiz, de modo que o princípio da imparcialidade destinado ao juiz-Estado demonstra ser um mito necessário para a manutenção da credibilidade do Poder Judiciário, fazendo com que o Direito seja capaz de alcançar sozinhos seus propósitos, principalmente o de “fazer justiça”.
É no inconsciente de cada indivíduo que estão registradas todas as suas vivências; sendo inexistente a opção de desativá-lo, ainda que momentaneamente. Desta forma, o que o princípio da imparcialidade impõe, a racionalidade, a razão de maneira pura, torna-se algo impossível de atingir.
Assim, como forma de defesa do sistema acusatório, o juiz das garantias é um importante instrumento capaz de atuar como uma política de redução de danos, evitando a contaminação que aniquila a originalidade cognitiva e traz à tona os resquícios do sistema inquisitório na prática processual penal brasileira.
É fato que impor ao magistrado, ao juiz-Estado de abster-se de sua própria história, de seus anseios, de seus desejos, de suas paixões, é inaceitável do ponto de vista psicológico. As tentações do mundo absoluto, onde o discurso consciente é chamado a operar, onde só há razão, corresponde ao bem supremo, ao universo quase divino; idealizado, imortal. Este discurso corresponde ao princípio da imparcialidade do juiz. Em contrapartida, o discurso do juizhomem, o do inconsciente é permeado de desejos de demanda, de pulsão, da incompletude, inerente à natureza humana.
O estudo da Psicologia, seja pelo viés psicanalítico ou pelo viés da dissonância cognitiva, nos proporciona o reconhecimento da condição humana. O juiz-Estado enquanto representante da função estatal, encontra-se cerceado do seu direito de ser humano. Está impedido de pecar para não macular a “justiça”, e não apontar o quanto de vulnerabilidade há em uma decisão judicial. O princípio da imparcialidade do juiz é o Direito legislado sobre o desejo.
Referências
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[1] Caso Piersack contra Bélgica: https://blog.uclm.es/cienciaspenales/files/2016/10/6caso-piersack-contra-belgicaderecho-a-un-proceso-independiente-e-imparcial.pdf
[2] Artigo 10°: "Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida".
[3] Artigo 14: "Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil.
[4] Artigo 8: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza".
[5] Artigo 5º, § 3º, CF: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
[6] A garantia da originalidade cognitiva exige que o juiz criminal – para efetivamente ser juiz e, portanto, imparcial – conheça do caso penal originariamente no processo (na fase processual, na instrução). Deve formar sua convicção pela prova colhida originariamente no contraditório judicial, sem pré-juízos e pré-cognições acerca do objeto do processo. (LOPES, 2021).
[7] Bernd Schünemann é um jurista alemão e filósofo jurídico com doutorado em Direito Penal sob a orientação de Claus Roxin.