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Transtorno Depressivo nos doramas coreanos: uma análise psicopatológica

Vanessa Martins Dias[1]

Elisângela M. Machado Pratta[2]

 

Resumo

Atualmente a saúde mental tem sido abordada em diversas mídias, sejam elas redes sociais, podcasts, filmes e séries. Dentre os transtornos mentais com maior incidência, o Transtorno Depressivo Maior e o Transtorno Depressivo Persistente representam a maior causa de incapacidade no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde estima-se que mais de 300 milhões de pessoas de diversas idades sofram com esse transtorno. O objetivo da pesquisa foi caracterizar o transtorno depressivo nas séries através dos personagens que são mostrados nos doramas, levando em consideração os sinais e sintomas, as vivências, os marcadores históricos, além do contexto histórico e cultural. Para tanto, foram analisados dois doramas, “Amor e outros dramas” e “Meu diário para a liberdade”, levando em consideração como os sinais e sintomas do transtorno depressivo, de acordo com o DSM V, são vivenciados pelos personagens e mostrados ao público que os assiste. Em cada dorama o foco recaiu sobre a personagem central que apresenta o elemento em estudo (questão depressiva). Neste sentido, cada personagem e sua história configuraram-se um estudo de caso. Considerando-se estes dados levantados, foi possível notar que, embora os doramas abordem o tema do Transtorno Depressivo e do suicídio, apenas um deles trata o tema de forma elucidativa e preventiva, uma vez que possibilita a reflexão através da sensibilização e empatia, além de esclarecer como buscar ajuda e tratamento.

 

Descritores: Psicologia; Psicopatologia; Transtorno Depressivo; Dorama; Coreia do Sul; Suicídio

 

 

Introdução

A saúde mental é um tema bastante discutido na atualidade e as mídias têm sido cada vez mais um canal importante para a divulgação e conscientização sobre esse assunto. A transitoriedade entre o normal e o patológico tem sido alvo de discussões ao longo da história da humanidade. Assim, questões acerca da conduta social, comportamentos aceitáveis e patologização são discussões que permeiam o imaginário da sociedade atual, principalmente diante do fato de que atingir a “felicidade” passou a ser a razão de ser do indivíduo. De acordo com Dalgalarrondo (2000), as experiências vividas por pessoas com doenças mentais apresentam especificidades e, ao mesmo tempo, conexões com o dito “normal”, uma vez que emoções como raiva, tristeza e euforia, por exemplo, são vivenciadas por pessoas com ou sem transtorno. O que diferencia é a intensidade e a duração dessas emoções em cada indivíduo.

Contudo, a sociedade atual se molda na individualidade e na “imposição” da felicidade, mostrada principalmente nas redes sociais. Os padrões impostos pela sociedade pós-moderna não convivem amigavelmente com sentimentos de tristeza. Uma sociedade extremamente individualizada que prima pelo consumo e pela exibição do que se tem e do que se quer mostrar, não apenas ignora os sentimentos de tristeza como também é capaz de gerá-los. Assim, dentro deste contexto, as cobranças sociais ligadas ao sucesso profissional, poder aquisitivo, beleza e felicidade tem elevado a incidência de Transtorno de Ansiedade e de Transtornos Depressivos entre adolescentes e jovens adultos (Acselrad, 2022).

A depressão é um dos transtornos de maior incidência nos últimos anos e atrelado aos quadros de Transtorno Depressivo encontra-se o suicídio. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o suicídio é a quarta causa de morte de jovens, com idade entre 19 e 25 anos no mundo, e tem se agravado nos últimos anos. De acordo com a organização, 700 mil pessoas cometeram suicídio no mundo, em 2019, ou seja, uma a cada 100 mortes. Por conta dos números alarmantes, a OMS criou a campanha Live Life, para apoiar os países em seus esforços para conter o suicídio.

O Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde publicado em Brasília em setembro de 2021 aborda especificamente o índice de suicídios no Brasil, pontuando que dentre os diversos fatores que contribuem para as autolesões, “a imensa maioria das pessoas que tenta ou comete suicídio é acometida por algum transtorno mental, sendo o mais comum a depressão”. Este boletim analisa mortes ocorridas entre 2010 e 2019, que somam 112.230, tendo um aumento de 43% na média anual que passou de 9.454 em 2010, para 13.523 em 2019. Em relação à faixa etária, as autolesões se concentraram entre os grupos com 20 a 39 anos (46,3%) e, na segunda posição, aparece a faixa dos 15 a 19 anos, com 23,3% dos casos.

Sob essa perspectiva, nas últimas décadas, a depressão tem sido tema de muitas séries e filmes, tornando-se estes um importante recurso para a discussão do tema de forma não preconceituosa e, em consequência, pode ajudar a desmistificar e a construir uma nova percepção sobre o transtorno. Nesse cenário, encontram-se os doramas que são séries dramáticas produzidas no leste e sudeste da Ásia. Os doramas exibidos na Coreia do Sul, por exemplo, tem sua história voltada para um único núcleo, com episódios semanais, geralmente 16 episódios, exibidos em uma única temporada. Apresentam a partir de gêneros variados, temas sensíveis de modo a levar aquele que assiste à reflexão e à empatia. Inicialmente os dramas eram históricos; no entanto, nos últimos anos têm pautado cada vez mais problemas sociais e psicológicos. Isso, tem coincidido com o agravamento dos suicídios a partir de 2010. Nesse sentido, muitos doramas trazem personagens que passam por problemas relacionados à saúde mental, principalmente depressão e risco de suicídio. Ao abordar a questão depressiva, os sintomas, os desafios emocionais e os impactos na vida das pessoas afetadas, os doramas tornaram-se um espaço público de debates de temas ligados aos transtornos mentais.

Além disso, cabe destacar também que houve o aumento do consumo desse tipo de série em consequência da globalização e do avanço tecnológico, o que possibilitou o maior acesso à internet e rompeu barreiras culturais. Nos últimos anos, os grupos de K-pop e os doramas avançaram para o Ocidente entre adolescentes e jovens, principalmente por conta das plataformas de streaming como a Netflix e de plataformas de compartilhamento de vídeos como o Youtube. Durante a pandemia da Covid-19 o Brasil foi o terceiro país do mundo a consumir doramas de acordo com a pesquisa realizada pelo Ministério da Cultura da Coreia do Sul em 2020, ficando atrás apenas da Tailândia e da Malásia.[3] Tal aumento pode se justificar na temática leve e romanceada dos dramas diante de um contexto de sofrimento causado pela pandemia.

Diante do que foi exposto, muitos desses dramas podem contribuir para o desenvolvimento de intervenções em saúde mental no contexto brasileiro, principalmente entre a população adolescente e jovem adulta que cada vez mais consome a produção cultural coreana, podendo tornar-se um instrumento de diálogo, reflexão, fortalecimento de vínculos e fatores de proteção. Além disso, muitos casos de depressão mostrados advêm do bullying, uma prática recorrente entre adolescentes e também muito presente na realidade brasileira, a qual pode trazer impactos para a vida dos envolvidos durante todo o processo de desenvolvimento. 

Levando em consideração a forma como o transtorno depressivo é mostrado e o grande alcance que esse tipo de conteúdo tem no Brasil, hipotetiza-se que os doramas possam contribuir para a compreensão, conscientização e discussão sobre a saúde mental junto àqueles que assistem as séries. Contudo, os doramas são pouco explorados em pesquisas sobre o tema.

Assim, o objetivo da pesquisa foi caracterizar o Transtorno Depressivo nas séries através dos personagens que são mostrados nos dramas, levando em consideração os sinais e sintomas, as vivências, os marcadores históricos, além do contexto histórico e cultural. Em relação aos objetivos específicos do presente estudo, estes foram: a) analisar se a forma como o transtorno depressivo é apresentado condiz com os critérios apontados pelo DSM-V; b) verificar se a forma de abordagem do tema utilizada no dorama conscientiza de fato sobre a depressão; c) identificar, ao longo dos dramas, se os personagens são orientados a buscar ajuda profissional e, se são, como se dá o processo de tratamento.

 

Método

A pesquisa teve como metodologia a abordagem qualitativa, uma vez que foram analisados personagens dos doramas que apresentam quadro de Transtorno Depressivo, buscando-se, então, observar o quadro em questão através de personagens, falas, cenas e contextos em que todos estes elementos estão inseridos, visando responder a seguinte pergunta de pesquisa: os sinais e sintomas, bem como as vivências, os marcadores históricos e o contexto cultural mostrados pelos personagens dos doramas permitem caracterizar o   Transtorno Depressivo?

A pesquisa qualitativa tem como intuito analisar as relações humanas de maneira distinta das estatísticas. Desse modo,

 

a diferença entre qualitativo-quantitativo é de natureza. Enquanto cientistas sociais que trabalham com estatística apreendem dos fenômenos apenas a região “visível, ecológica, morfológica e concreta”, a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas (Minayo, 2003, p. 22).

 

Neste contexto, a pesquisa foi descritiva, uma vez que ela possibilita compreender de forma mais detalhada uma realidade existente, podendo revelar novas perspectivas sobre ela. Frente ao delineamento apresentado foi utilizada como estratégia para o levantamento de dados o estudo de caso, que na Psicologia tem como intuito analisar de forma detalhada um caso individual que explica determinada patologia.

 

O estudo de caso como modalidade de pesquisa é entendido como uma metodologia ou como a escolha de um objeto de estudo definido pelo interesse em casos individuais. Visa à investigação de um caso específico, bem delimitado, contextualizado em tempo e lugar para que se possa realizar uma busca circunstanciada de informações (Ventura, 2007).


Dentro da perspectiva de estudo de caso, foram selecionados dois doramas que constituíram o corpus de análise do presente trabalho. Estes foram selecionados a partir dos seguintes critérios de inclusão: apresentar personagens com sinais e sintomas do transtorno depressivo e a forma como o transtorno estava inserido na trama, independente do gênero. Portanto, para o presente estudo foram inseridos os seguintes doramas: “Amor e outros dramas” e “Meu diário para a liberdade”, os quais mostram o cotidiano e a vida real. Além disso, considerando-se os doramas selecionados para o presente estudo, estes tiveram boa aceitação pelo público brasileiro de acordo com a porcentagem de relevância da Netflix e do Google. Assim, os doramas “Meu Diário para a Liberdade” e “Amor e Outros Dramas” têm respectivamente 95% e 94% de relevância nas avaliações do Google. Embora sejam doramas que abordam o cotidiano e a vida real, bem como o sofrimento humano diante deles, o gosto do público por eles é semelhante a doramas de romance.

 

Doramas selecionados para o desenvolvimento do estudo – caracterização geral

1) Amor e Outros Dramas (2022)

O drama acompanha a vida de um grupo de amigos que se formou na escola e que ainda mantém vínculos. A trama se passa na Ilha de Jeju e a história de cada um dos personagens se entrelaça. Uma das personagens tem transtorno depressivo e por não conseguir cuidar do filho, perde a guarda para o pai da criança.

 

2) Meu diário para a liberdade (2022)

Trazendo reflexões sobre sonhos e escolhas, o drama narra a vida de três irmãos que têm que se deslocar diariamente até Seul para trabalhar. O trajeto cansativo e os problemas da vida cotidiana dos jovens adultos permeiam as suas discussões, que por vezes são tristes e melancólicas. Os dois personagens centrais apresentam, a seu modo, transtornos depressivos.

É importante lembrar que, em cada dorama, o foco de análise refere-se à personagem principal que lida com a vivência do Transtorno Depressivo. Desse modo, cada personagem tem sua especificidade apresentada através da tabela abaixo:


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Procedimento de Coleta de dados

A partir da seleção dos doramas para composição do corpus de análise, o primeiro passo foi assistir cada uma das séries buscando apreender na linguagem das mesmas, as características das personagens principais que possibilitam compreender o transtorno em questão, levantando elementos centrais que se articulam aos objetivos propostos pelo estudo. Além disso, assistindo as séries foram feitas as seleções de diversas cenas que ilustram os elementos verificados.

 

Procedimento de Análise de dados

A análise propôs-se, também, a considerar as prerrogativas da Psicopatologia e do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais, levando em consideração também, o modo como esses transtornos são mostrados e quais impactos de fato podem estabelecer. Destaca-se que, as descrições das séries foram atreladas às características inerentes ao transtorno depressivo presentes no CID-11, no DSM-V e em livros de Psicopatologia. Além disso, a análise também foi feita a partir da Análise de Conteúdo, a qual

 

parte de uma leitura de primeiro plano das falas, depoimentos e documentos, para atingir um nível mais profundo, ultrapassando os sentidos manifestos do material. Para isso, geralmente, todos os procedimentos levam a relacionar estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados e a articular a superfície dos enunciados dos textos com os fatores que determinam suas características: variáveis psicossociais, contexto cultural e processo de produção da mensagem. Esse conjunto de movimentos analíticos visa a dar consistência interna às operações (Minayo, 2014).

 

 

Assim, segundo a autora em questão, a Análise de Conteúdo consiste em um conjunto de técnicas de análise de comunicação que tem como objetivo descrever o conteúdo das mensagens, tendo como intuito compreendê-las e, ao mesmo tempo, analisar como as mesmas podem ser entendidas enquanto mensagem subjetiva.

Portanto, a análise realizada visa identificar e descrever as seguintes características: sinais apresentados, sintomas descritos e relatados, além dos impactos causados no cotidiano, nas relações pessoais e na vida em aspectos gerais, bem como elementos ligados a indicação de tratamento. Diante da análise de tais aspectos, o intuito foi, também, destacar até que ponto esses doramas podem de fato auxiliar na conscientização e acolhimento de pessoas com transtorno depressivo, contribuindo para a orientação da importância da busca de ajuda profissional para o direcionamento desta questão.

 

Resultados

O quadro 2 sumariza os sinais e sintomas bem como as vivências, os marcadores históricos e o contexto cultural mostrados pelos personagens dos dramas. As informações foram obtidas a partir dos critérios do DSM V, relacionando a eles, os impactos da depressão na vida dos personagens, a orientação dada diante do quadro, a qualidade das informações, a busca por ajuda profissional e, em caso positivo, qual é o tratamento mostrado pela série.


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a) Síntese dos doramas escolhidos para a análise

Os doramas escolhidos para a análise, como apontado anteriormente, foram “Meu Diário para a liberdade” e “Amor e outros dramas”. “Meu diário para a liberdade” traz a história de três irmãos que moram da área rural na Coreia do Sul e se deslocam diariamente para trabalhar na capital Seul. A história centra-se em uma das irmãs, Mi-jeong, que trabalha em uma agência de publicidade e sofre constantes abusos de seu chefe que a humilha diante dos outros colegas de trabalho, inferiorizando qualquer projeto que ela apresente a ele.  A empresa desenvolve projetos culturais para que os funcionários façam uma atividade além das desenvolvidas como forma de trabalho. Mi-jeong não se engaja em nenhuma delas e é cobrada pela chefe de recursos humanos a escolher algum deles para participar. Além dela, outros três funcionários também não escolhem nenhum projeto e juntos resolvem formar um grupo chamado “Meu diário para a liberdade”, onde através da escrita podem ser eles mesmos, além de trocarem experiências pessoais através do que escrevem.

O dorama foi selecionado por conta de dois personagens que apresentam Transtorno Depressivo, a própria  Mi-jeong que se apresenta isolada e distante da realidade, e Sr. Gu, funcionário do pai de Mi-jeong, sempre calado, com comportamento agressivo e alcoolista, ambos com sinais de depressão.

O drama “Amor e outros dramas”, por sua vez, traz a cada episódio a história de um personagem de um grupo de moradores da Ilha de Jeju. A comunidade vive da pesca e da venda de peixes e frutos do mar e se ajudam tanto no trabalho como nas relações pessoais, pois a convivência e os vínculos são estreitados por conta de morarem numa ilha distante do continente. Ao longo de cada episódio,  a história de vida de um personagem vai sendo contada. A personagem que tem depressão é Seon-na, uma mulher que tem por volta de trinta anos, é casada, tem um filho de cinco anos, mora em Seul, mas nasceu e cresceu na Ilha de Jeju. O casamento termina por conta da sua depressão e da falta de habilidade do marido em conviver com a esposa e o seu transtorno depressivo. Por conta de um acidente de carro que ela sofre junto do filho, ela perde a guarda da criança e o ex-marido passa a cuidar do filho, uma vez que Seon-na é considerada incapaz de exercer o papel de mãe por conta da depressão. Diante disso, ela entra na justiça para conseguir a guarda do filho de volta e recebe a visita de uma assistente social que vai à sua casa verificar as possibilidades da guarda da criança voltar para a mãe. Durante a conversa, a assistente social mostra a ela um vídeo em que o menino relata que a mãe não pode cuidar dele e nem brincar porque ela está doente. Essa situação a deixa bastante abalada e ela resolve voltar para a Ilha de Jeju.

Em seu retorno à cidade natal, Seon-na passa a noite em frente ao mar e em certo momento, já amanhecendo, resolve pular. Ela é salva por um grupo de mulheres pescadoras e a situação mobiliza os moradores que ficam aflitos e fazem de tudo para resgatá-la. O acontecimento traz a participação de um amigo e ex-namorado de Seon-na, Dong-seok. A relação entre os dois, estreitada novamente pelo reencontro, a ajuda a retomar seu tratamento e a lutar pela guarda do filho. Dong-seok torna-se um importante apoio para a personagem. 

 

Discussão

 O dorama “Meu diário para a Liberdade” é uma série do ano de 2022, produzida pelo canal JTBC e exibida na Coreia do Sul entre os meses de abril e maio do mesmo ano. O drama apresenta a rotina de vida extenuante de três irmãos, que buscam, cada um a seu modo, encontrar a felicidade. Os irmãos têm por volta de trinta anos, moram em Sampo, área rural do país, e se deslocam diariamente para Seul para trabalhar. A rotina extenuante por conta do deslocamento e do trabalho é mostrada através da desmotivação e da melancolia que os personagens apresentam em relação à vida pessoal e a ausência de investimentos em outras áreas que vão além da vida profissional. O fato de morarem longe da metrópole faz com que o cansaço do deslocamento seja mencionado constantemente e, inclusive, seja também motivo de preconceito entre os colegas de trabalho, que não os convidam para passeios por isso.

O dorama retrata um fenômeno atual da Coreia do Sul, denominado como “geração Sampo”. A "geração Sampo" é um termo que se refere a uma tendência social e demográfica na Coreia do Sul, na qual muitos jovens adultos optam por abandonar os três pilares tradicionais da vida coreana: trabalho, casamento e filhos. O termo "Sampo" em coreano significa "três abandonos". Essa geração emergiu na década de 2010 como uma resposta à pressão social por alcançar o sucesso profissional, ter um bom emprego e cuidar da família.

Muitos jovens sul-coreanos sentem-se sobrecarregados com a necessidade de estudar muito e trabalhar duro para ter sucesso em uma sociedade altamente competitiva. Para alguns jovens, a ideia de se casar e ter filhos é vista como um fardo financeiro e emocional que pode interferir em suas carreiras e em suas vidas pessoais. Em vez disso, eles preferem focar em suas próprias realizações profissionais e pessoais. A personagem principal do dorama é Mi-Jeong, uma das irmãs do trio que tem por volta de trinta anos e trabalha em uma agência de publicidade. Ela se mostra distante em relação aos colegas de trabalho, almoça em silêncio mesmo acompanhada e não faz parte de nenhum grupo de atividades culturais oferecidos pela empresa. Isso faz com que ela e mais três colegas de trabalho sejam vistos como antissociais e sejam pressionados a fazer parte de um dos grupos. Por conta dessa situação, eles resolvem criar seu próprio grupo, no qual escrevem em um diário e leem um para o outro o que escreveram. O grupo foi nomeado por eles como “Meu diário para a liberdade”, em uma referência à liberdade de serem o que quiserem ali naquele espaço.

Mi-Jeong apresenta sinais e sintomas de Transtorno Depressivo Persistente, conforme o que é observado no comportamento da personagem e pelo que é dito por ela, como será exposto ao longo da análise. De acordo com o DSM V (2013) os critérios para o diagnóstico da Distimia, ou seja do Transtorno Depressivo Crônico, são: humor deprimido na maior parte do dia, na maioria dos dias, indicado por relato subjetivo ou por observação feita por outras pessoas, pelo período mínimo de dois anos e mais duas ou mais características, que no caso de Mi-Jeong são apresentadas pela baixa autoestima, baixa energia e sentimentos de desesperança. Ela mora com a família na área rural, onde possuem uma plantação em que todos da família trabalham, o pai tem uma fábrica de pias e conta com a ajuda de um funcionário, o Sr.Gu. Este é um homem que tem mais ou menos quarenta anos, que apresenta sinais de depressão e é alcoolista. Assim como Mi-Jeong permanece boa parte do tempo em silêncio, no entanto é mais agressivo e menos melancólico se comparado a ela.

O homem bebe diariamente e guarda em casa todas as garrafas de bebida consumida, como se fossem troféus, em uma postura autodestrutiva. Ele mora em uma casa próxima à da família do patrão e faz as refeições junto deles. O jeito do Sr. Gu se comportar chama a atenção de Mi- Jeong, que se aproxima dele como amiga, mas com um interesse romântico.

O homem tem sinais e sintomas que se caracterizam como Transtorno Depressivo Maior. De acordo com o DSM V (2013), pelo menos um dos sintomas deve ser humor deprimido ou perda de interesse ou prazer. No caso do personagem, o Sr. Gu, apresenta humor deprimido na maior parte das cenas, em todos os episódios, falta de interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dorama, além do sentimento de culpa excessiva ou inapropriada quase todos os dias. Além desses sinais, ele apresenta irritabilidade, agressividade e alcoolismo. De acordo com Barbosa (2011), o comportamento de risco pode sinalizar um pedido de ajuda. Além disso,

 

alterações de comportamento, isolamento social, ideias de autopunição, verbalizações de conteúdo pessimista ou de desistência da vida, e comportamentos de risco podem sinalizar um pedido de ajuda. O comportamento suicida está frequentemente associado com a impossibilidade do indivíduo de identificar alternativas viáveis para a solução de seus conflitos, optando pela morte como resposta de fuga da situação estressante. Detectar e tratar adequadamente a depressão reduz as taxas de suicídio (BARBOSA, 2011, p. 236).

 

 

 Ele relata o quanto ter que conversar com as pessoas o incomoda, devido à falta de motivação em manter um diálogo. Mi-Jeong faz um relato profundo de como a tristeza a acompanha diariamente desde a sua infância. Vejamos:

 

Sr. Gu - Odeio ver as pessoas se mexendo na minha frente. Odeio mais ainda quando começam a falar. Tenho que ouvir as bobagens delas e dizer bobagens de volta. Vou dizer o que? É cansativo pensar no que dizer a seguir.

Mi- jeong - Eu sinto o mesmo. Das 24 horas do dia, só me sinto bem por umas duas. Nem me sinto ótima. Só me sinto bem. De resto, só sobrevivo. Sou assim desde pequena. Quando via as crianças correndo felizes, ficava chateada, mesmo bem nova. “Porque elas estão tão felizes?” Porque não sou feliz como elas? Eu como e durmo, como e durmo. Porque tenho que perder tanto tempo? Ficaria satisfeita de viver só oito anos em vez de oitenta. Não faço nada, mas sempre estou exausta. Ainda assim, eu sigo em frente, como gado sendo conduzido. Vamos continuar. Não sei porque tenho que viver, mas vamos ter uma vida decente enquanto eu estiver viva. É assim que mal consigo sobreviver todos os dias.

Sr. Gu - Gado conduzido. Gado conduzido… Você já deve ter visto isso.

Mi- jeong- Quando criança, sim.

Sr. Gu se levanta do sofá, vai até a geladeira, pega um sorvete e entrega para ela, que questiona “Sorvete?” e ele responde: Eu comprei porque estava bêbado. Quando estou bêbado sou mais humano do que quando sóbrio. Ela come o sorvete e diz: “Gostei!”

 

A cena traz o diálogo sobre o sofrimento dos personagens e também sobre a forma subjetiva que cada indivíduo apresenta os sintomas do Transtorno Depressivo, seja ele maior ou persistente. Sr. Gu apresenta o transtorno depressivo maior, canalizado no humor rebaixado, em atitudes autodestrutivas e na agressividade. Mi-Jeong, por sua vez, apresenta o transtorno depressivo persistente ao relatar que sente triste desde criança, quando se incomodava com a alegria das outras crianças. Ela também destaca em sua fala a falta de motivação em viver e de perspetivas para o futuro, além da tristeza constante que a acompanha em seu dia a dia.

No episódio nove, os dois personagens conversam sobre terapia e suicídio. Durante a conversa, Sr. Gu fala sobre suicídio, sobre terapia e, de certa forma, sobre a culpa que sente pela companheira ter cometido suicídio, embora afirme que não aguentava mais vê-la sofrer. Segue, abaixo, o relato:

 

Sr. Gu - Há muito tempo, vi uma coisa na TV. Há um penhasco famoso nos EUA onde as pessoas se suicidam. Entrevistaram pessoas que sobreviveram depois de pular do penhasco. Todos disseram que, quando se chega a dois terços da queda, seja qual for o motivo de querer se matar, você não sente mais vontade. Alguns segundos antes, eles acharam que morrer era a única saída e pularam. Alguns segundos depois, aquele sentimento passou a não ser nada. Eu achei que seria assim com ela. Então eu disse: “Para alguém que acha doloroso viver, fazer terapia é alcançar dois terços da queda de um penhasco sem acabar morto no final”. E eu disse que ela deveria fazer terapia. Eu disse isso a ela. Mas ela pulou e morreu.

Mi- Jeong - Quem?

Sr. Gu - A mulher com quem eu morava. Sim, eu estava falando para ela morrer. Era muito frustrante ver ela sofrer tanto.

 

O diálogo traz uma importante reflexão sobre a dificuldade das pessoas que estão próximas àquele que está deprimido de identificar a ideação suicida. No diálogo é possível perceber que Sr. Gu acreditava estar ajudando a companheira a buscar terapia. Outro diálogo que faz referência à terapia e ao acompanhamento médico ocorre entre o Sr. Gu e seu chefe, que recomenda que ele busque ajuda profissional para o alcoolismo. A depressão é comumente associada ao alcoolismo, uma vez que a “a depressão é vista como um fator que predispõe o indivíduo ao uso de álcool. Este achado é sustentado pelo fato de, muitas vezes, esta substância ser utilizada como automedicação para melhora do humor, o que acaba contribuindo para um uso futuro excessivo e/ou dependente.” (Argimon, 2013, p.103). O uso do álcool contribui para o agravamento dos sintomas depressivos e do risco de suicídio.

 

O consumo alcoólico elevado é uma prática comum em grande parcela da população mundial, desencadeando graves consequências fisiológicas e sociais. O álcool constitui uma substância psicoativa que inicialmente causa uma sensação de euforia, liberdade e prazer. Tais sensações em fase tardia são substituídas por sensações depressivas e alterações emocionais exacerbadas, que reduzem a capacidade de raciocínio e pensamento lógico, podendo gerar quadros psicóticos momentâneos com graves consequências, como aumento da violência, perda da clareza de ideias e em casos extremos levar o indivíduo alcoolizado a praticar ações como homicídios, direção imprudente ou suicídios (Costa, 2018, p.74).

 

Na conversa, Sr, Gu apresenta resistência em relação ao tratamento, alegando que o médico era chato. Seu chefe, por sua vez, aponta que o tratamento não é um momento de diversão.  O recorte abaixo revela esta questão:

 

Chefe - Ao contrário de outros nesse ramo, você não joga nem fica atrás de mulher. Você não faz mais nada, apenas bebe sozinho discretamente. Gosto disso, e por isso chegamos até aqui juntos. Mas agora o álcool virou um problema. Soube que espancou um de seus gerentes por uma besteira. Não é mais tão cuidadoso como antes. Realmente não pretende parar? Não me diga que não é alcoólico. Se não tem força de vontade, tente tomar remédios. Tente o que puder. Vai acabar assim? Soube que você disse à irmã mais nova do Baek para ir ao hospital fazer terapia. Uma história de “dois terços do caminho” ou algo assim. O que era? O ponto de tudo se torna nada. Tudo aquilo foi conversa fiada?

Sr. Gu - Eu vou a um médico.

Chefe -Me disseram que você não vai mais.

Sr. Gu -Mudei de médico. O Dr. Kim era chato.

Chefe -Desde quando terapia tem que ser divertida?

 

O dorama “Meu Diário para a Liberdade” traz importantes discussões sobre a saúde mental de forma sensível com diálogos profundos que nos levam à reflexão e a empatia. As discussões sobre o transtorno depressivo mostram a forma subjetiva como cada personagem interpreta seu sofrimento. Além disso, traz a importância de uma ajuda profissional quando se faz referência sobre terapia, no entanto a discussão se perde quando o personagem opta por fazer “sessões de terapia” com Mi-Jeong,  conversando com ela enquanto bebe, em vez de buscar um profissional em saúde mental. Nesse sentido, a orientação sobre saúde mental e tratamento deixa de ser efetiva uma vez que o personagem conversa com a pessoa com quem se relaciona romanticamente, enquanto bebe, sem que essas discussões possam levá-lo a uma reflexão e a uma mudança de comportamento, principalmente em relação ao comportamento destrutivo e à culpabilização, no caso da personagem, ao seu desinteresse pela vida e a falta de esperança.

Considerando-se os aspectos apresentados, grande parte dos suicídios estão relacionados a algum transtorno mental, dentre eles, o mais frequente, é o transtorno depressivo. Há que se considerar, a dificuldade não apenas da pessoa que apresenta ideação suicida, mas também das pessoas que estão à volta da pessoa adoecida e quem nem sempre compreendem os pedidos de ajuda, sejam eles verbais ou não.

 

A ideia do suicídio como um aparente desfecho para uma história de muito sofrimento, de um quadro depressivo, um ato de desespero ou insanidade, reacende uma discussão sobre a dificuldade que é a compreensão e a abordagem destas pessoas no desenrolar de suas tramas pessoais, além das dificuldades de detecção de sinais de desesperança, dos pedidos de ajuda, verbais e não verbais comuns frente ao surgimento do desejo de morte e da própria ideação suicida (Barbosa, 2011, p. 235).

 

Discutir o assunto de modo a buscar a prevenção do suicídio é de grande valia. Sob essa perspectiva, é importante que os sinais e os sintomas do transtorno depressivo sejam discutidos e, ao mesmo tempo, indícios de ideação suicida possam também ser identificados por pessoas próximas ao indivíduo em sofrimento.

 

Considerando os indicadores de qualidade da mensagem audiovisual, a oportunidade está presente tanto na escolha dos contos de fadas, que são atemporais, para dar um tom fantástico e imaginativo à narrativa, quanto na abordagem de temas como os transtornos mentais. Com uma maior abertura para tratar a temática da saúde mental, que já não é tão estigmatizada atualmente como antes o era, é importante que esse assunto seja colocado em pauta no âmbito da ficção, especialmente, nesse caso, no da ficção seriada. O modo como diversos transtornos mentais são retratados ao longo do K-drama, de forma nem excessivamente dramática, nem exageradamente caricata, também contribui para a ampliação do horizonte do público. (Lemos, 2022, p. 321).

 

Diante do que foi exposto, a importância da abordagem do tema nos doramas, de modo a sensibilizar e a desenvolver empatia no público para que este perceba e acolha alguém próximo que tenha Transtorno Depressivo e, talvez, ideação suicida, é de grande relevância. No entanto, para além da sensibilização do público, faz-se necessária a orientação mais direta para a busca de ajuda profissional e a evolução do personagem e melhora do quadro diante do tratamento, o que o dorama não aponta.

“Amor e outros dramas”, por sua vez, também tem uma perspectiva realista da vida cotidiana. O dorama de 2022 relata a história de diversas pessoas que moram e trabalham na Ilha de Jeju, focando, principalmente, um grupo de amigos que se conhecem desde o colégio. O senso de comunidade é forte entre eles, uma vez que morando em uma ilha os vínculos são estreitos e eles se ajudam mutuamente. A fonte de renda da comunidade centra-se na pesca e na venda destes produtos. Uma das personagens é Seon-na, uma mulher com transtorno depressivo persistente, que tem por volta de trinta anos. Ela é casada e tem um filho. Mora em Seul, mas cresceu na Ilha. Em sua história de vida apresenta episódios de intenso sofrimento. Durante a sua infância foi abandonada pela mãe, passou a viver com o pai que a negligenciou e tornou-se alcoolista. O pai, passando por grande sofrimento por conta da separação e da falência de sua empresa, se mata na frente dela. Tais acontecimentos fazem com que ela apresente sinais e sintomas de depressão ao longo da vida, como é explicado por ela. Os elementos apresentados levam à caracterização do Transtorno Depressivo Persistente.

 

Apesar de não vivenciarem todos os sintomas de um episódio depressivo maior, as pessoas com transtorno depressivo persistente nunca estão livres de seus sintomas por mais de 2 meses. Além disso, elas tendem a apresentar outros transtornos psicológicos sérios, incluindo um risco aumentado para desenvolver transtorno depressivo maior, transtorno da personalidade e transtorno por uso de substância (Whitbourne, 2015, p.166).

 

 

Na primeira cena em que a personagem aparece, Seon-na está deitada na cama, seu marido vai até o quarto para acordá-la, abre as cortinas e avisa que tem que ir trabalhar. Com dificuldade ela senta na cama, cabisbaixa e sem motivação para começar o dia. Na cena seguinte, ela dá comida para o filho, sorri e brinca com a criança. O marido cobra os afazeres domésticos, mostrando as roupas sujas para lavar, como revela o diálogo da cena abaixo:

 

Marido - Cheire o uniforme escolar do Yeol. Percebeu que as nossas roupas estão fedendo? Como você lavou nossas….

Seon-na- Que tal você ajudar um pouco? Faça faxina e lave a roupa. Por que tenho que fazer tudo?

Marido - Quer que eu trabalhe e faça faxina? E que tal um banho? Olhe para você. Quando lavou seu cabelo? Você está cheirando mal. E pode fazer o favor de ir ao hospital? Dizem que a depressão tem cura! Então, tome o remédio e faça terapia. (grito)

A criança pede ao pai que pare de brigar.

Marido - Temos um filho, mostre pelo menos alguma vontade de viver.

 

O marido sai e ela vai limpar a casa e tomar banho. O marido abre a porta do banheiro com o filho no colo e ela pergunta por que ele está com o filho no colo e se ele não foi para a escola. Ele responde que ela não foi buscar o filho na escola e não atendeu às ligações da professora. Ela sai do banheiro e percebe que já escureceu e é noite, vai até a janela e chora. De acordo com o DSM V (2013), o transtorno depressivo maior caracteriza-se por ao menos um dos dois sintomas por duas semanas, sendo eles humor deprimido ou perda de interesse ou prazer, além de cinco caraterísticas que no caso da personagem correspondem a: humor rebaixado a maior parte do dia e na maioria dos dias, apetite diminuído, insônia ou hipersonia, baixa energia ou fadiga, baixa autoestima, concentração pobre ou dificuldade de tomar decisões e sentimentos de desesperança.

Além dos sintomas descritos acima, a personagem apresenta também sinais de despersonalização e desrealização. De acordo com o DSM V (2013), sentimentos de insensibilidade, anestesia, inércia, apatia e de estar em um sonho não são incomuns em episódios depressivos maiores. No caso da personagem,  esse sentimento aparece na cena em que se esquece de buscar o filho na escola e não percebe que já anoiteceu, dando a impressão de que passou o dia todo no banho.

No sexto episódio, Seon-na passa por uma nova perda de percepção e bate o carro enquanto levava o filho para a escola. Passaram seis meses do divórcio e a criança está morando com o pai há dois meses. O ex-casal está em disputa judicial pela guarda da criança. Tal situação é um disparador para a tentativa de suicídio. Ela retorna à Ilha de Jeju, onde nasceu e viveu até a adolescência e passa a noite observando o mar, até que decide pular. A tentativa de suicídio é mostrada de forma subjetiva, trazendo para o espectador seus pensamentos enquanto afundava no mar. Dentre esses pensamentos, é possível perceber a falta de  acolhimento do marido e de compreensão acerca do transtorno depressivo, além da percepção da personagem por negligenciar os cuidados com o filho.

Seon-na é salva por mulheres pescadoras que mobilizam toda a comunidade para o resgate. O retorno à sua cidade natal faz com que ela também retome um vínculo antigo, pois ela reencontra Dong-seok, um amigo da adolescência. Ela é seu antigo amor e por isso ele se reaproxima e, de certa forma, tenta compreender porque ela  tentou suicídio. Para as pessoas da comunidade ele é condenado por amar uma “suicida”. Na tentativa de compreender o que ela vive ele questiona a medicação que ela tomou e principalmente como ela se sente para que precise tomar essa medicação. A seu modo ele tenta acolher e aconselhá-la. O recorte abaixo evidencia este elemento:

 

Dong-seok - Por que tomou remédio mais cedo? Está doente?

Seon -na -É para depressão.

Dong-seok- Porque? Se sente deprimida?

Seon -na -Sim.

Dong-seok -Todo dia?

Seon -na -Não, só às vezes.

Dong-seok -Porque? Desde quando?

Seon -na - Acho que desde que meu pai morreu. No dia em que você bateu no Jae-gu, meu pai me chamou para darmos uma volta. Ele me levou para uma praia distante e me pediu para comprar pão, dizendo que estava com fome. Quando voltei com o pão, ele estava dirigindo em direção ao mar. Acho que meu pai estava passando por coisas piores do que eu podia imaginar. O negócio dele faliu, ele se divorciou, minha mãe se casou de novo… Acho que foi difícil de suportar. Naquele dia, voltei para Seul, porque minha mãe foi me buscar. A vida é engraçada, é estranho eu me sentir à vontade para falar sobre isso. Talvez seja porque é com você.

Dong-seok - Já faz mais de vinte anos. Não pode chorar por isso até agora. Quer ser como minha mãe, que nunca está feliz e age como se carregasse o peso do mundo nas costas? Acho isso mais estranho.

 

Em outra cena, ele explica que não compreende muito bem como ela se sente e pede para que ela lhe conte. Durante a conversa, a personagem menciona que pensa em iniciar a terapia, pois só a medicação não está fazendo efeito. Ele acolhe e oferece dinheiro caso ela não tenha para fazer o tratamento. A forma como ela é tratada, faz com que ela se sinta à vontade para explicar como se sente, já que não está sendo pressionada para ficar melhor:

 

Dong-seok - Como você sabe, sou cabeça dura. Me explique de forma simples. Como você se sente quando está deprimida?

Seon -na –  É difícil de explicar.

Dongseok -Pelo menos tente.

Seon-na - Vamos ver. É como se um cobertor encharcado envolvesse meu corpo inteiro. E tudo é escuro. E apesar de haver muitas luzes, não consigo vê-las quando estou deprimida. Tudo fica preto.

Dong-seok - Isso acontece muito?

Seon-na - De vez em quando.

Dong-seok - Não é nada sério, é só uma ilusão. Porque está sorrindo? Estou certo, nada disso é real. Como pode estar escuro com tantas luzes? Da próxima vez que acontecer, diga a si mesma que é uma ilusão. Pense que você não está em sã consciência. Ou me ligue na hora. Então, vou dizer: Acorde, sua pirralha! Isso ai é coisa da sua cabeça!” (Ela sorri) É uma doença sem cura?

Seon-na - Não. O médico disse que tem cura. Vou fazer terapia em breve. Acho que só tomar remédio não está funcionando.

Dong-seok - Ótimo, faça tudo que puder. Até de noite é claro aqui. Não seria assustador só enxergar escuridão? Faça tudo o que puder. Tome os remédios e faça terapia. Você tem dinheiro? (ela acena que sim com a cabeça) Se não tiver, me avise. (ela sorri) Do que está rindo? Pareço pobre?

Seon-na - Só estou grata.

 

No episódio dezessete, Dong-seok liga para Seon-na com o intuito de saber se ela está fazendo o tratamento e como está se sentindo. Ela responde que está fazendo o tratamento e se sente melhor. Ao longo do drama, o acolhimento do amigo e antigo amor foi mostrado de forma sutil e delicada, em alguns momentos ele se diz “ignorante”, mas mostra-se interessado em compreender como ela se sente para poder ajudá-la. A diferença estabelecida entre as formas como o marido e um amigo lidaram com o transtorno depressivo de Seon-na deixam claro o quanto o acolhimento é importante. Além disso, a ênfase no tratamento e na terapia são mostrados como quesitos fundamentais para a melhora do quadro depressivo da personagem. Desse modo, a forma como o transtorno depressivo maior é abordado no dorama além de trazer empatia e sensibilização traz também informação e orientação sobre o transtorno.

Considerando-se estes dados levantados, foi possível notar que, embora os doramas abordem o tema do Transtorno Depressivo e do suicídio, apenas o “Amor e Outros Dramas” de fato cumpre o propósito de elucidar sobre o Transtorno Depressivo, mostrando de forma clara os sinais e sintomas, bem como seus impactos na vida da personagem, além de mostrar seu tratamento e sua evolução após aderir a ele. Desse modo, tal dorama pode ser um importante instrumento para a discussão e conscientização do Transtorno Depressivo, uma vez que o tema é discutido de forma sensível e elucidativa, pois que possibilita a reflexão através da sensibilização e empatia, além de esclarecer como buscar ajuda e tratamento.

No que diz respeito à possibilidade de utilização do dorama “Amor em Outros Dramas” como recurso terapêutico, convém destacar que o mesmo pode ser utilizado em intervenções grupais, tanto com pessoas com quadros depressivos quanto com familiares de pessoas que tem o transtorno. Em relação às pessoas com depressão, as cenas podem auxiliar na identificação de sinais e sintomas, além de proporcionar uma possibilidade de escuta e acolhimento entre si e auxílio profissional. Quanto às famílias, a Psicoeducação sobre o Transtorno Depressivo, a importância do acolhimento e apoio familiar, bem como do tratamento, tornam-se elementos importantes a serem trabalhados.

É importante ressaltar que, o uso de filmes e séries é apontado pela literatura como um recurso terapêutico, denominado por alguns autores como cinematerapia. De acordo com Soto (2008), a cinematerapia consiste na exibição de um filme ou série a um grupo, no qual os personagens passam por situações semelhantes a deles, de modo que eles possam ver seus problemas e suas situações de uma nova perspectiva. 

 

Conclusão

Conclui-se que os personagens dos doramas, com base nos sinais e sintomas descritos, aproximam-se muito da apresentação usual de pacientes com transtorno depressivo maior e o seu uso na educação em cuidados com a saúde mental pode ser altamente eficaz na conscientização e orientação  daqueles que os assistem.

O Transtorno Depressivo foi apresentado nos doramas analisados de acordo com as características denominadas pelo DSM V.  Dentre os sintomas mais comuns apresentados pelas personagens, estão a tristeza, desesperança e falta de prazer, que desencadeiam nas personagens impactos na vida pessoal e profissional, como, por exemplo, perda da guarda do filho, no caso de uma das personagens e alcoolismo, no caso do único personagem masculino analisado com o transtorno.

A partir da análise feita, nota-se que, embora o tema tenha relevância nos doramas e tenha como intuito conscientizar sobre o transtorno e prevenir o suicídio em um país com altos índices de autolesão, a discussão e o propósito se perdem quando não se orienta para a busca de ajuda profissional para o tratamento, seja ele medicamentoso e/ou psicoterápico. Nesse sentido, no dorama “Meu Diário para a Liberdade” a psicoterapia como possibilidade de tratamento é abordada como forma de ajuda para que o personagem trate a depressão e o alcoolismo. No entanto, o personagem opta por não fazê-lo, uma vez que prefere continuar bebendo e desabafar com a mulher com quem se relaciona afetivamente em vez de buscar ajuda profissional.

Além da construção sensível das personagens com Transtorno Depressivo e de em alguns doramas ser mencionada a importância do tratamento, outro aspecto importante é o acolhimento. No dorama “Amor e outros dramas”, por sua vez, o acolhimento é feito por um amigo de infância e ex-namorado da personagem principal, que tem uma postura diferente da que o ex-marido dela tinha, o que faz com o que o suporte dado a ela por ele faça diferença no tratamento e na vida dela. Desse modo, tal dorama pode ser um importante instrumento para a discussão e conscientização do Transtorno Depressivo, uma vez que o tema é discutido de forma sensível e elucidativa, podendo ser usado como um importante instrumento para intervenções com grupos.

A partir do exposto, o principal intuito da pesquisa era analisar a forma como o Transtorno Depressivo é mostrado nos doramas coreanos, levando em consideração que a Coreia do Sul é um dos países com o índice de suicídio mais alto do mundo. Nessa perspectiva, os doramas mostram, através de seus personagens, os sinais e sintomas da depressão, que correspondem às características de avaliação do DSM-V (2013). Além de analisar os sinais e sintomas, a pesquisa também teve como objetivo analisar através de dois doramas se a forma como a depressão é retratada colabora para a melhor compreensão do quadro, o que é feito de forma efetiva e sensível, estimulando a empatia. Porém, a orientação sobre a busca de ajuda profissional acontece em apenas um dos dois doramas analisados.

Dentre as limitações do estudo, convém destacar a falta de pesquisa prévia sobre o assunto, uma vez que os doramas passaram a ser consumidos em massa, no Ocidente, apenas nos últimos anos. Em contrapartida, uma pesquisa futura poderá aprofundar não apenas a abordagem do transtorno depressivo nos doramas, como também uma pesquisa voltada para o público que consome os doramas e ao mesmo tempo tem depressão, de modo a compreender se na perspectiva de quem tem transtorno depressivo a retratação do transtorno é coerente.  Outro aspecto que dificultou, foi a busca de bibliografia sobre a importância de séries e filmes na discussão sobre saúde mental e a importância da terapia e medicação em casos de depressão, uma vez que a as séries podem gerar empatia e também identificação. Porém, esse é um tema pouco estudado no Brasil. Sob tais perspectivas, uma pesquisa futura poderá ser realizada com base em outros idiomas, além do português, de modo a ter um escopo teórico maior.


Referências

APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [recurso eletrônico]: DSM-5 / [American Psychiatric Associativo; tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento ... et al.; revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli ... [et al.]. 5. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2014.

 

ACSELRAD, Marcio e Tavares, Davi Barros. A medicalização do sofrimento psíquico na cultura do hiperconsumo. Fractal: Revista de Psicologia [online]. 2022, v. 34.


BARBOSA, Fabiana de OliveiraMACEDO, Paula Costa Moscae  SILVEIRA, Rosa Maria Carvalho da. Depressão e o suícido. Rev. SBPH [online]. v.14, n.1, p.233-243, 2011.

 

BRASIL. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil. Boletim Epidemiológico | Secretaria de Vigilância em Saúde | Ministério da Saúde, v.52, n.33, set. 2021, p.1-10.

 

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2000.

 

LEMOS, Lígia P.,Ficção seriada: estudos e pesquisas – Alumínio/SP: Jogo de Palavras, São Luís/MA: EDUFMA, 2022.

 

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.

 

VENTURA, Magda Maria. O estudo de caso como modalidade de pesquisa. Revista SOCERJ. 2007.

 

WHITBOURNE, Susan Krauss. Psicopatologia: perspectivas clínicas dos transtornos psicológicos [recurso eletrônico] / Susan Krauss Whitbourne, Richard P. Halgin; tradução: Maria Cristina G. Monteiro; revisão técnica: Francisco B. Assumpção Jr., Evelyn Kuczynski., 7. ed., Porto Alegre: AMGH, 2015.


[1]    Graduada em Psicologia. Centro Universitário Central Paulista - UNICEP. E-mail: vanessa.sanjuan@gmail.com

[2]    Docente do curso de Bacharelado em Psicologia do Centro Universitário Central Paulista – UNICEP. E-mail: elipratta@gmail.com

[3]           Disponível em https://www.opovo.com.br/vidaearte/2021/08/10/brasil-e-o-3-pais-do-mundo-que-mais-consumiu-doramas-na-pandemia.html . Acesso em 6 de Julho de 2022.

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