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Maternidade Atípica: o luto nosso de cada dia – levantamento de como mães de autistas vivenciam o luto pela morte do filho idealizado e a aceitação do filho real

Cintia Viviani Rocha Moraes[1] 

Elisângela Maria Machado Pratta2

 

RESUMO

A maternidade por si só já se configura como uma função complexa e conflituosa assumida por muitas mulheres. Quando algumas mães recebem o diagnóstico de autismo dos seus filhos se veem diante do inesperado. Assim sendo, fizemos uma investigação de como ocorre a transição do luto pelo filho idealizado para a aceitação do filho real. Esta pesquisa consistiu em tentar adentrar o mundo subjetivo do ser mãe atípica, com todo o respeito e sigilo exigidos para tal, e dessa forma, pensar o luto simbólico pelo filho atípico. O objetivo do estudo foi visualizar como mães de filhos autistas vivenciaram o luto pelo filho idealizado e a aceitação do filho real, com todos os seus atravessamentos, mudanças de rotina, encargos financeiros e exigências familiares. A presente pesquisa foi realizada no âmbito da abordagem qualitativa por meio de uma pesquisa descritiva exploratória. Participaram deste estudo 9 mães, de filhos na segunda infância com autismo, com idades entre 25 e 45 anos. Destas 4 mães receberam o diagnóstico de autismo do filho entre 2 e 3 anos, 2 receberam há mais de 3 anos e 3 receberam há menos de 1 ano. Os dados foram coletados por meio de um questionário socioeconômico e através de um roteiro de entrevista semiestruturado elaborado para o presente estudo. Os dados obtidos foram trabalhados por meio de Análise de Conteúdo Temática. A partir da análise foi possível identificar dois Núcleos Temáticos: um que apresentou a vivência das mães pelo luto do filho idealizado e o outro que trouxe a aceitação do filho real e as expectativas para o futuro. Os resultados levantados evidenciaram que todas as 9 mães entrevistadas nesse estudo vivenciaram e, de alguma forma, ainda vivenciam o luto pelo filho idealizado e estão seguindo na construção do filho real. Conclui-se que, é necessário entender o luto materno atípico para pensar intervenções de acolhimento e orientação para a mulher/mãe que se encontra nesse processo, evitando dessa forma que se desenvolvam problemas e/ou transtornos físicos e/ou mentais.

 

Descritores: Maternidade. Mães atípicas. Luto. Transtorno do Espectro Autista

 

Introdução

O ser mãe é instintivo, uma tendência feminina inata ou uma construção social contextualizada e firmada como um contrato social? (Badinter, 1985). Ser mãe é muito mais do que prover cuidados físicos e emocionais para uma nova vida; ser mãe é uma função social e simbólica.

A função materna foi construída, ao longo da história, permeada por normatizações e rótulos aceitos sem contestações e sem argumentações, papel esse imposto por uma sociedade patriarcal e machista que via ora a mulher identificada como uma mãe acolhedora, amável, passiva e permissiva, que deveria ter como objetivo de vida, única e exclusivamente, ser mãe, procriar e constituir uma família, e ora uma mulher que tem sua participação limitada a somente gestar. Foi somente a partir do século XIX que a maternidade se constituiu como essencial e insubstituível na constituição de um novo ser. Nesse período a mulher/mãe e a criança ganharam outros contornos, mais relevantes socialmente; com isso, a maternidade passou a ocupar não somente uma função biológica, mas também uma função social; a mãe torna-se nesse momento essencial para a manutenção da prole na família e para a criação emocional e educacional dos filhos (Maldonado, 2021). Assim, a mulher passou a ser definida a partir da maternidade, a mulher virtuosa era aquela que sentia prazer com todas as vivências da maternidade, dores do parto, amamentação, noites mal dormidas, e foi assim consagrada a figura da boa mãe que conquista alegria e felicidade somente através da maternidade.

No século XX, a mãe abarca mais uma atribuição, a de maior responsável pela felicidade do seu filho. Isso se deu pelo avanço das ideias psicanalíticas no que diz respeito à função materna, essencialmente presente no início da vida, e de fundamental importância para que o bebê se tornasse um indivíduo saudável psiquicamente. Como traz Badinter (1985), a mãe do século XX arcará com o inconsciente e os desejos do filho como uma última e importante responsabilidade. A mãe converte-se na personagem central da família, refletindo uma imagem de devoção e de sacrifício culminada na “boa mãe”, uma importância hipervalorizada da relação mãe-filho (Maldonado, 2021).

Neste âmbito, a maternação, termo muito usado na atualidade, se refere aos cuidados que a mãe dispõe para sua cria, sejam de ordem física, emocional, psicológica, cognitiva e/ou afetiva, ou seja, trata-se de um complexo e refinado comportamento materno diante do bebê. Tornar-se mãe, além das transformações emocionais vivenciadas exige mudanças imprevistas do ponto de vista prático e funcional, por exemplo, conciliar carreira e maternidade visto que a maternidade pressupõe, acima de tudo, uma alteração nas prioridades da mulher. Mesmo com o apoio crescente do pai, a mulher quando se torna mãe tem um aumento considerável de sua carga de serviços domésticos, o que corrobora o fato, indiscutível, da desigualdade entre os papéis parentais, que se apoia na “essência” e no “instinto” materno naturalizando a sobrecarga de atividades que a mulher passa a carregar ao se tornar mãe (Badinter, 2011).

Além disso, a maternidade não é, muitas vezes, o que a mulher deseja ou espera. Nem sempre se coloca um bebê saudável e feliz nos braços da mãe, assim como acontece em algumas revistas e propagandas, e mesmo se isso acontecesse a mulher passa, geralmente, por sentimentos como angústia, alegria, perda de identidade, cansaço, orgulho, sonho e excitação; a maternidade real, constantemente é dura e sofrida, o que dirá para mães que não recebem seus bebês lindos e saudáveis nos braços (Gutman, 2009). Neste sentido, as mães atípicas representam um grupo social específico que luta pelo bem-estar e inclusão de seus filhos com deficiências físicas e/ou mentais e que participam ativa e passivamente do ambiente e contextos sociais nos quais estão inseridas. Nesse estudo, foi feito um recorte das mães de autistas, que detêm algumas particularidades que permeiam sua maternidade atípica.

A vivência da maternidade atípica coloca em pauta a questão da vivência de um luto. Todos, durante a nossa vida, nos deparamos com inúmeras perdas, portanto, vivenciamos muitos processos de luto, uns mais intensos e relevantes que outros. O luto materno é considerado, por muitos, o luto mais sofrido que uma pessoa possa vivenciar, exatamente pela intensidade do vínculo existente entre uma mãe e seu filho. Entretanto, existe um outro luto materno que podemos chamar de luto pelo filho idealizado. Neste processo, não há a morte física do filho, todavia há uma morte simbólica de um filho que foi desejado e esperado. Estamos nos referindo a um filho que, num primeiro momento, parecia muito saudável e “normal”, contudo, especialmente ao nascer ou na primeira infância recebe um diagnóstico de uma deficiência, uma síndrome ou um transtorno, que possivelmente, suscitará em prejuízos físicos e/ou mentais que prejudicarão o desenvolvimento esperado e idealizado por sua mãe (Freitas, 2021). O luto pela morte do filho idealizado traz uma dor e um sofrimento intensos, muitas vezes velado, não validado pela família e pela própria sociedade. A mãe enlutada, nesse caso, passa por transformações gigantescas em sua vida como um todo e precisa elaborar o luto vivenciado para conseguir se refazer em uma outra maternidade, a chamada maternidade atípica (Freitas, 2021).

Nesse processo de luto, às vezes imperceptível, essa mãe tem que repensar e recriar a sua maternidade e a sua capacidade de se dar incondicionalmente, para esse filho real. O quanto esse “deixar ir” (desejos e sonhos em relação ao filho e à maternidade) para poder “deixar vir” (filho real e maternidade possível) causa marcas e sequelas físicas e, principalmente, emocionais nessa mãe atípica? Sentimentos como tristeza, angústia, medo, desamparo, culpa, dor são constantes durante o luto e geram muita preocupação (Freitas, 2021). Entretanto, segundo Casellato (2020) a sociedade não autoriza o enlutado a vivenciar de forma adequada esse processo, tudo tem que ser muito rápido e quase que indolor. Neste sentido, para a autora em questão, a vivência do luto e seus impactos devem seguir um padrão que a sociedade estabelece, por exemplo, medir a intensidade do choro é uma forma de caracterizar o enlutado como forte e valorizá-lo por isso. Nesse contexto, as particularidades são desconsideradas, o que pode ocasionar diagnósticos equivocados do luto como uma doença, uma patologia.

Além disso, uma pesquisa realizada pelo psiquiatra Colin Murray Parkes, em 1964, nos mostra que muitos transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão podem ser desencadeados pelo processo de luto. (Parkes, 2009) Pensando sobre essa possibilidade, é necessário observarmos em mães enlutadas simbolicamente se esses transtornos se manifestaram ou se há risco de ainda se manifestarem. Portanto, torna-se necessário entender o luto materno atípico para pensar intervenções de acolhimento e orientação para a mulher/mãe que se encontra nesse processo, evitando, dessa forma, que se desenvolva problemas e/ou transtornos físicos e/ou mentais.

Frente a esta realidade, mães atípicas sofrem com os desafios, frustrações e preconceitos com os quais têm que lidar no cotidiano, abdicam de suas vidas para se dedicarem aos cuidados com seus filhos, deixando de lado seus desejos e suas vontades, muitas vezes, se anulando totalmente em função do compromisso com essa maternidade. De acordo com uma pesquisa realizada por Constantinis et al. (2018), uma mãe relatou que não fazia sentido ela se cuidar, já que a vida girava em torno dos cuidados com o filho. Por isso, as redes de apoio, composta do auxílio de outras pessoas e de instituições, são essenciais para dar suporte emocional, cognitivo e, muitas vezes, financeiro à mãe que vivencia as dificuldades de ter um filho autista (Smeha, 2021).

Se hoje a mulher tem a liberdade de escolher se vai ser mãe ou não, a mãe não tem a liberdade de escolher se será mãe de um filho com deficiência ou não. Se na chamada maternidade típica (em que o filho é típico, ou seja, sem deficiência) as mulheres-mães sofrem com todas as mudanças e transformações naturais de todo esse processo, como se dá esse processo na chamada maternidade atípica? As mães atípicas, certamente, não escolheram esse papel, porém, em sua grande maioria, mesmo diante do desconhecido e dos grandes desafios que atravessam sua vivência decidiram abraçar esse novo mundo com muito amor e uma boa dose de coragem para tentar mudar esse cenário tão árido que se mostra quando se tem um filho deficiente (Novaes, 2018).

Assim, neste cenário, o objetivo do presente estudo foi analisar a vivência do luto pela morte do filho idealizado em mães de crianças autistas, bem como suas implicações e a aceitação do filho real.

 

Método 

O presente estudo foi realizado no âmbito da abordagem qualitativa, a qual possibilita uma compreensão profunda do tema estudado, por meio de abstrações, hipótese, conceitos ou teorias (Freitas, 2021). Uma pesquisa que se estrutura sob a metodologia qualitativa propõe: a) priorizar os sujeitos sociais que se quer investigar; b) considerar o grupo a ser investigado, assim como o indivíduo; c) investigar grupos homogêneos em alguns aspectos, porém diversificados em outros, para que se possa visualizar e entender semelhanças e diferenças; d) a busca por grupos que trazem experiências e expressões que possam ser observadas e confirmadas com a pesquisa (Minayo, 2013).

Para atingir os objetivos propostos foi feita uma pesquisa descritiva exploratória. Descritiva porque tem como objetivo analisar os dados coletados para se ter um aprofundamento do tema e exploratória porque foi realizado um levantamento histórico sobre o tema, além de uma pesquisa em campo com o objeto de estudo, ou seja, as mães atípicas. Para esta pesquisa foram utilizados questionários e entrevistas semiestruturadas com mães que vivenciam a maternidade atípica. No que se refere a coleta dos dados, foi utilizado neste estudo, um roteiro de entrevista, elaborado pela pesquisadora a partir das leituras realizadas e dos objetivos do presente estudo. Destaca-se que, segundo Minayo (2013), o roteiro de entrevista tem a função de guiar o trabalho, provocando, dessa maneira, possibilidades de investigação a partir de um questionamento inicial.

No que diz respeito à fundamentação geral foram consultados livros e artigos que contemplaram os seguintes temas: maternidade, luto, autismo e deficiência, sendo muitos desses materiais embasados na Psicanálise. As revistas e os periódicos foram acessados nas bases eletrônicas SciELO e PePSIC.

Participantes

Participaram do estudo 9 mães de crianças autistas que se propuseram a passar por uma entrevista direcionada e que atendiam os critérios estabelecidos. Os critérios para a inclusão na amostra foram os seguintes: a) Ser mãe biológica de uma criança autista com idade até o final da segunda infância (6 anos); b) Tempo do diagnóstico; c) Estar disposta a falar sobre o momento do diagnóstico do/a filho/a; d) Estar disposta a falar sobre sua condição de vida atual.

Materiais e Instrumentos

Para a seleção da amostra foi utilizado um questionário de triagem para levantamento de dados sociodemográficos e outras perguntas específicas referentes a eixos dos critérios de inclusão, composto por 23 questões. A partir da seleção das mães participantes foi utilizado para coleta um roteiro de entrevista semiestruturado contendo 8 questões disparadoras desde a gravidez da mãe até os dias atuais, com o intuito de estimular a mãe a relatar todas as etapas por quais ela passou desde o nascimento do seu filho autista, o momento do diagnóstico e pós-diagnóstico até a vivência atual.

Procedimentos de coleta de dados

Após o projeto ser submetido ao comitê de Ética do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP) e aprovado (CAAE 63083822.6.0000.5380, data de 26 de outubro de 2022) mediante o parecer nº 5.669.002. Para a constituição da amostra do presente estudo foi enviado, em grupos de mães de autistas pertencentes a instituições locais que atendem crianças com autismo e suas famílias, um convite sondando se os membros dos grupos tinham interesse em participar do estudo. Assim, foi encaminhado para grupos de mães atípicas e para contas privadas, ambos no WhatsApp, um questionário de triagem com perguntas sobre dados sociodemográficos e outras perguntas específicas, pautadas nos critérios de inclusão, que orientaram a seleção das mães. Dessa forma, foi realizada a seleção das mães que atingiram os critérios de participação do estudo, sendo que cada uma das mães selecionadas foi contatada individualmente. A entrevista aconteceu de forma presencial, marcada com antecedência, de acordo com a disponibilidade de cada mãe. No dia agendado, antes da realização da entrevista, foi entregue o TCLE para leitura e assinatura. As entrevistas foram gravadas, mediante autorização, e transcritas na íntegra após a finalização de cada encontro.

Procedimentos de análise de dados

Em relação ao roteiro de entrevista utilizado, a partir da transcrição das entrevistas na íntegra, buscou-se chegar ao significado das respostas de cada uma por meio de sua classificação em unidades de sentido. Neste bojo foi realizada, especificamente, uma Análise de Conteúdo Temática a qual foi feita a partir de uma análise dos significados (BARDIN, 2011). Esta análise envolve três etapas: a) Pré-análise - após a leitura do material selecionado para a análise, sistematiza-se as principais ideias estabelecidas no referencial teórico, determinando os indicadores para a interpretação dos dados coletados; b) Exploração do material - constitui o recorte do material bruto coletado em unidades de registros, sendo transformados sistematicamente e agregados em unidades para conseguir descrever de forma mais precisa as características necessárias expressadas no texto; c) Interferência e Interpretação, coloca-se as informações coletadas pela análise em destaque, permitindo por meio da quantificação simples a apresentação dos dados em figuras, diagramas, etc.

Os dados obtidos foram organizados em núcleos temáticos constituídos por categorias e subcategorias identificadas a partir dos relatos das participantes, tomando como base os objetivos definidos para o presente estudo. Tais aspectos foram ilustrados por meio de recortes significativos das falas das participantes ao longo das entrevistas. Neste sentido, destaca-se que os discursos foram identificados pela letra M, seguida de um número (por exemplo M1 – Mãe 1) a fim de preservar o anonimato das participantes, garantindo a questão do sigilo conforme a Resolução 466/2012.

 

Resultados e Discussão

Para a composição da amostra foi encaminhado um questionário de triagem para grupos específicos de mães atípicas e a partir dos dados levantados nos 34 questionários respondidos foram selecionadas. A partir dos dados obtidos nos mesmos, foram selecionadas 9 mães de crianças autistas que preenchiam os critérios de inclusão estabelecidos. Destaca-se que, na composição da amostra 2 mães receberam o diagnóstico há mais de 3 anos, 4 mães tiveram o diagnóstico entre 2 e 3 anos e 3 mães tiveram o diagnóstico há menos de 1 ano. Seguem os dados demográficos, na Tabela 1, que foram respondidos pelas mães que participaram efetivamente da pesquisa.

Com base nos dados levantados e trabalhados foi possível identificar 2 Núcleos Temáticos que emergiram a partir dos dados obtidos com as entrevistas realizadas. Segue-se abaixo, a descrição dos núcleos temáticos encontrados. Para o discernimento dos pontos identificados no estudo, se distingue, nas descrições, as categorias em negrito e as subcategorias em sublinhado.

 

 

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NÚCLEO TEMÁTICO 1 – A vivência do luto pelo filho idealizado

Segundo Freud (1917), o luto deve ocorrer sem a necessidade de intervenções, sendo superado de forma natural. Porém, durante a sua vivência, podem emergir rebaixamentos emocionais, nos quais os sujeitos podem demonstrar a falta de interesse pelo mundo que o cerca. Com isso, o redirecionamento da sua libido para outro objeto fica comprometido e a tendência é o afastamento das atividades e situações que não estão relacionadas a pessoa que morreu. No caso das participantes desse trabalho o luto não é por perda física do ente querido, mas sim pela perda simbólica da representação do filho ideal. A grande questão que se coloca é a seguinte: as mães que vivem o luto pelo filho idealizado conseguem redirecionar a libido para o filho real?

No processo de luto observado há uma morte simbólica de um filho que foi desejado e esperado. Estamos nos referindo a um filho que, num primeiro momento, parecia muito saudável e “normal” e que receberam um diagnóstico de uma deficiência, uma síndrome ou um transtorno, que possivelmente, suscitará em prejuízos físicos e/ou mentais que prejudicarão o desenvolvimento esperado e idealizado por sua mãe (Freitas, 2021), bem como colocará em risco expectativas e planos a curto, médio e longo prazo referentes ao filho em questão. Em um primeiro momento foi possível observar a existência de um luto velado e não elaborado, seguido do redirecionamento da libido, dos cuidados e das preocupações para o filho real, diagnosticado com TEA.

O Núcleo Temático 1 apresentou 2 categorias. A primeira categoria versa sobre a percepção de idealização do filho. Neste aspecto, uma primeira subcategoria, que emergiu foi o reconhecimento do filho idealizado. Os dados obtidos revelaram que, dentre as 9 mães entrevistadas, 6 mães reconhecem que idealizaram sim o filho, 1 mãe diz não querer pensar sobre isso e 2 disseram que não idealizaram o filho de forma alguma. Tal construção pode ser observada por meio de diversos aspectos. Um deles, que emergiu nas falas das mães, refere-se a questão da gestação, independente desta ter sido planejada ou não. Planejar ou aceitar uma gestação traz muitas questões subjacentes, que podem caracterizar uma transição ou uma crise. No caso da transição natural do processo de desenvolvimento, a mulher se torna mãe, além de filha, já a crise pode ser desencadeada a partir de situações inesperadas que se acumulam ao longo do processo de gestar (Maldonado, 2021).

 

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A partir das colocações abaixo podemos compreender melhor esse fenômeno:

Eu sempre tive o sonho de ser mãe (M1)

...ele foi desejado e programado (M2)

...a gente começou a planejar a segunda gestação, e eu planejei até a data que ele poderia nascer, por causa do trabalho...(M6)

Foi cem por cento planejada, é...a gente queria muito, desejava muito esse filho (M7)

...a gente teve a gestação planejada (M8)

Muitas são as mudanças que ocorrem com a chegada de um bebê, alterações nos aspectos psicológicos e bioquímicos são naturalmente esperados, bem como modificações nos aspectos socioeconômicos. Portanto, as preocupações com o futuro de uma forma mais ampla intensificam ansiedades na gestante provocando raiva, frustração e ressentimento com a própria gestação (Maldonado, 2021). De acordo com os relatos das mães entrevistadas não foi visualizado crise na gestação de nenhuma delas. Todas as 9 mães relataram gestações tranquilas, sem intercorrências físicas ou emocionais, ressaltando-se que, as mães que não planejaram a gestação não demonstraram particularidades em relação às mães que planejaram a gestação, ou seja, o vínculo mãe-bebê de todas as 9 mães foi constituído de forma positiva e esperada. Desta forma, pode-se dizer que, a idealização de um filho está presente nas representações mentais e nas fantasias que a mulher cria a seu próprio respeito e de seu bebê, que ela ainda não conhece, mas que já imagina sendo real (Maldonado, 2021), a partir do momento da identificação e vivência da gestação. A perda do filho idealizado ocorre com todas as mães, independente de terem seus filhos saudáveis ou não, uma vez que, os filhos nunca vão corresponder integralmente àquela imagem criada a partir da fantasia e do desejo das mães. Importante destacar que dentre as 9 participantes, somente 2 mães disseram categoricamente que não haviam idealizado o filho, já as outras 7 mães narraram de forma indireta que idealizaram sim o filho que estavam gestando. Vejamos:

...eu ainda sofro com essas questões (filho idealizado) porque a gente quer que o filho seja aceito na sociedade...(M6)

...eu ainda não sei qual é o filho real, eu sei o filho que eu idealizei (M7)

No início da minha gestação meu maior medo era esse (ter um filho com alguma deficiência), então eu acho que eu já fui me preparando...(M9)

Se houve a idealização de um filho que não correspondeu integralmente ao esperado, houve a perda desse filho idealizado, essas impressões estão descritas na segunda subcategoria nomeada de impactos da perda do filho idealizado. Esta vivência foi revelada a partir de elementos como sentimento de tristeza, preocupação, angústia, luto, estar perdida frente ao desconhecido, algumas mães disseram que foi “um baque”, que foi uma surpresa, um sentimento de um revés súbito e inesperado, uma vez que, como já foi dito, nenhuma mãe espera ter um filho com uma deficiência ou um transtorno.

Frente a esta realidade, a literatura aponta que mães de crianças que receberam o diagnóstico de TEA vivenciam um processo que pode ser iniciado com certa resistência até a “clara percepção da alteridade entre o filho real e o filho idealizado e finalizam entendendo que o filho real não poderá ser como o filho sonhado” (Smeha, 2011; Cezar, 2011; apud Constantinidis et al, 2018, p.48).

A perda simbólica do filho idealizado está relacionada a perder o filho que não corresponde precisamente ao imaginário de filho ideal para a mãe, e aqui não estamos falando só em características físicas e de personalidade. Nesse contexto estamos nos remetendo a questões de desenvolvimento que serão fatores cruciais para um bom funcionamento social da criança com TEA, questões que irão impactar, muitas vezes, de forma negativa a atuação desse filho na família, na escola e na sociedade de forma ampla. O que ficou evidente na fala das mães entrevistadas, sem exceção, de forma objetiva ou subjetiva, é a preocupação com o futuro do seu filho autista, principalmente em relação à autonomia. Nesse momento, as falas das mães foram carregadas de pesar e de angústias. Seguem algumas falas para exemplificação destes aspectos:

Nenhuma mãe queria que seu filho fosse autista, mas meu filho é assim... (M1)

...lógico que a gente fica assim preocupada porque há uma coisa, assim, nova...que eu não tinha conhecimento...(M1)

...desde a gestação, até antes de engravidar, você imagina o filho ideal e não sei quê e bá, bá, bá, então teve sim essa, um baque, né... (M5)

...a gente perde o chão, né, e foi como se eu estivesse caminhando nas nuvens, não sabia onde eu tava, o que fazê, por mais que a gente tivesse o mínimo de conhecimento, é um processo, é um luto mesmo porque a tristeza é muito grande... (M6)

... porque uma coisa é você idealizar ali características, o que esse bebê vai ser quando crescer, por exemplo e outra coisa é você não ter mais possibilidades, por exemplo, num comprometimento, dependendo de quanto é esse comprometimento, as possibilidades vão sendo reduzidas, né. (M6)

...eu fiquei perdida naquele momento, triste, no escuro, eu tô no escuro até hoje... (M7)

...no começo, é...que nem eu te falei, foi um baque, sim, pra mim... (M8)

...no fundo, no fundo, ninguém tá (preparado para um filho autista), né (riu), mais, mais eu acho que eu já tinha um, sabe, uma intuição, não sei (riu novamente)... (M9)

A perda do filho idealizado e a “chegada” do filho autista pode gerar um luto não elaborado que, por sua vez, pode ocasionar adoecimentos e sofrimentos frente as inúmeras mudanças, superação e força para lidar com as novas demandas. Na terceira subcategoria, reações e sentimentos pela perda do filho idealizado, pode-se observar esse movimento a partir das narrativas das participantes.

... eu dei uma desanimada, comecei a ter assim, muita crise (ansiedade) porque é, é muita coisa, que nem assim no começo, é pra saber lidar com crise dele...mudei assim bastante em questão de preocupação (M1)

            ...cansei, estava cansada, chorava e chorava e acordava no meio da noite, chorava, falava, nossa meu Deus do céu, não é possível, estou cansada, não quero mais, alguém vai cuidar dele porque eu num aguento...(M3)

            ...não deu muito tempo de eu vivenciar o luto porque eu tinha que correr atrais das coisas pra ele...então, ao mesmo tempo que eu sentia aquela tristeza, aquela angústia, eu tinha que correr contra o tempo...(M5)

Como foi possível observar a partir dos relatos das mães, a vivência da perda do filho simbólico foi atravessada por sentimentos de pesar e tristeza, embora nem todas as mães tenham conseguido expressar esses sentimentos em palavras. Contudo, elas demonstraram elementos de linguagem não verbal que traduzidos revelaram um certo desânimo e cansaço. Ao falar sobre o filho idealizado e os desafios do filho real, as entrevistadas relataram sentir preocupação, angústia, medo, ansiedade, cansaço, crise de choro e tristeza, que podemos, certamente, relacionar ao processo de luto pela perda do objeto adorado, no caso o filho saudável. Entretanto, como ficou bem claro nas palavras da mãe 5 e latente na fala das outras mães, não houve tempo para vivenciar o luto, pois o filho real demandava cuidados e atenção imediatos. Neste sentido, segundo Freud, em seu clássico Luto e Melancolia (1917), o luto é um sentimento profundo em resposta a perda de uma pessoa querida, um ânimo rebaixado e doloroso, uma falta de interesse em tudo que não tem relação com a pessoa que se foi, o desenvolvimento do luto exige tempo, isolamento, reflexão. Contudo, segundo Casellato (2020) a sociedade não autoriza o enlutado a vivenciar de forma adequada esse processo, tudo tem que ser muito rápido e quase que indolor.

Na vivência do luto, dois aspectos são relevantes, tratar dos sentimentos decorrentes da perda e favorecer a reestrutura da vida sem a pessoa amada, ambos são fundamentais para que o enlutado vai aos poucos retomando o controle e voltando a ter uma vida semelhante a que ele tinha antes da perda (Casellato, 2020). No caso do presente estudo, as mães não perderam os filhos por morte, foi uma perda simbólica, perderam o filho idealizado, saudável, e ao se depararem com essa perda não puderam vivenciar o luto de forma plena, pois o filho real estava clamando por cuidados e por aceitação, por isso falamos do luto não reconhecido, solitário e sofrido. A partir das narrativas das mães entrevistadas foi possível perceber que até falar sobre esse sentimento, sobre luto, foi difícil, algumas mães falaram abertamente sobre a vivência do luto, outras falaram de forma mais indireta, subjetiva, não conseguindo abordar o tema claramente. Considerando-se estes elementos, o que ficou muito claro a partir dos relatos das mães é a falta de tempo para vivenciar o luto, para todas as 9 mães foi tudo muito rápido, não tiveram tempo de digerir o diagnóstico de autismo dos filhos pois já tiveram que imediatamente procurar as terapias indicadas para o acompanhamento dos filhos. Sentimentos como tristeza, angústia, medo, desamparo, culpa, dor são constantes durante o luto e geram muita preocupação (Freitas, 2021). No caso das mães entrevistadas ficou subentendido o quanto elas se sentem responsáveis pelo desenvolvimento dos filhos e pelo prognóstico positivo ou não do quadro instalado, esse movimento demanda tanto tempo e energia que realmente não sobra espaço para a elaboração apropriada do luto.

Assim, após o diagnóstico, vem a reestruturação da nova rotina, uma vez que, ter um filho com TEA exige um acompanhamento diário. Por isso, a mãe, comumente, passa a viver em função do filho e de seus compromissos. Para essa análise temos a segunda categoria que nos traz a questão da reestruturação materna que apresentou uma subcategoria intitulada alterações vivenciadas na tentativa de reorganização da rotina.

Ter um filho autista implica uma reestruturação da rotina, pois o tratamento é composto de inúmeras terapias e acompanhamentos, o que irá exigir adequações de horários para quem irá se responsabilizar por essa nova rotina. Algumas informações sobre o TEA são importantes para entendermos qual o nível de envolvimento da família no tratamento da criança autista: 1) alguns comportamentos podem ser reduzidos e outros podem persistir, isso dependerá dos terapeutas e do empenho da família; entretanto, outros comportamentos permanecerão independente do que se faça; 2) a probabilidade da criança deixar de ser autista é quase nula; 3) o problema é no desenvolvimento, por isso indica-se 3 sessões de intervenção por semana; 4) a ciência está evoluindo na busca por intervenções mais eficazes, não existem os milagres que as redes socias vivem anunciando; 5) cada criança deve ter um atendimento individualizado; 6) escola, família e terapias devem caminhar juntas; 7) o autismo não é detectado a partir de exames laboratoriais; 8) convênios médicos podem ser um obstáculo para a tratamento da criança com autismo; 9) é importante vivenciar sentimentos de desalento e frustração, nenhuma mãe ou pai quer ter um filho com autismo; 10) procure especialistas para fechar o diagnóstico e para acompanhamento terapêutico. Considerando-se estes elementos, os pais precisarão de profissionais que os orientarão para as questões que são mais prejudiciais na vida diária da criança, como problemas de sono, alimentação, distúrbios da fala e de sensibilidade e questões escolares (Brites, 2019).

A partir das orientações acima percebe-se o quanto é importante a presença dos pais no acompanhamento, não só das terapias fora de casa e da escola, mas também nas atividades de vida diária, ou seja, a supervisão do filho deve ser constante até que ele adquira capacidade e autonomia para realizar algumas tarefas sozinho. Dentre as 9 mães participantes, 6 mães disseram que o pai “ajuda” em tudo, inclusive levar para as terapias, 2 mães disseram que o pai ajuda só financeiramente e 1 mãe disse que o pai ajuda somente com os cuidados quando está em casa. O marido e outros filhos, quando houver, são fundamentais para dar suporte para a mãe, que geralmente, abarca uma parcela muito maior de cuidados e disposição para acompanhar o tratamento do filho autista; assim, é muito comum a mãe renunciar a carreira, vida social e vida afetiva para cuidar do filho, enquanto o pai participa majoritariamente com o auxílio econômico (Smeha, 2011). No caso das mães participantes desse estudo, 7 mães continuam trabalhando enquanto somente 2 não trabalham. Portanto, pode-se concluir que a ausência do suporte por parte do marido pode gerar a exaustão relatada de maneira direta por algumas mães e velada por outras, já que além das tarefas relacionadas ao filho autista, que são muitas, ainda tem que dar conta das tarefas relacionadas ao trabalho e afazeres com a casa e em alguns casos com os outros filhos. Desta forma, fica claro que a divisão de tarefas com o marido é fundamental para aliviar a exaustão de mães sobrecarregadas com inúmeras funções. 

NÚCLEO TEMÁTICO 2 – A aceitação do filho real – expectativas para o futuro

Este núcleo permitiu visualizar a aceitação do filho real diante das novas possibilidades, ressaltando-se a importância da rede de apoio, bem como as expectativas que as mães depositam no futuro, em relação ao filho autista e em relação a elas mesmas. “Historicamente é esperado que a mulher assuma o lugar de cuidadora, interligado ao lugar que a maternidade ocupa, de afeto e amor incondicional” (Gutierrez; Minayo, 2009, apud Constantidinis, 2018, p.54). No caso das mães entrevistadas os cuidados com os filhos autistas ocupam todo o tempo excedente após o horário do trabalho, para aquelas mães que trabalham, e para as 2 mães que não trabalham fora de casa o relato é de que os cuidados com os filhos autistas e com os outros filhos ocupam todo o tempo delas.

Neste núcleo foram identificadas 2 categorias. A primeira categoria nomeada de aceitação do filho real, foi dividida em 2 subcategorias. A primeira subcategoria, a vivência da maternidade atípica, está focada nos cuidados com a saúde física e mental das mães atípicas e no que mudou na vida delas após o diagnóstico dos filhos autistas.

 

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Alguns sentimentos foram comuns nas narrativas sobre a vivência da maternidade atípica, principalmente ansiedade e preocupação. Outros aspectos também surgiram de forma isolada como crise nervosa, cansaço e estresse intensificados, maior emotividade e uma sensação constante de sobrecarga. Durante as entrevistas, foi possível perceber o quanto essas mães estão exaustas. Seguem, abaixo, algumas falas significativas sobre estes elementos:

...é fácil a pessoa fala assim, ah, você precisa se cuidar, logicamente, que a gente tem, porque a minha mãe fala assim quando eu tenho crise de ansiedade muito forte, ela fala assim, e se você fica doente quem vai cuidar do seu filho? Então, tipo, eu tenho essa preocupação, mais assim...não é fácil você se cuidar porque num sobra tempo... (M1)

...eu acho que talvez eu tenha ficado mais, ah mais nervosa, mais, é uma sobrecarga, a maternidade já é uma sobrecarga, né, e um filho com deficiência é mais uma, uma sobrecarga... (M2)

..nunca gostei de sai de casa, e aí quando o laudo do meu filho, óh seu filho tem isso, ele vai ter que passar por terapia, então eu falei nossa, eu vô ter que fazer isso, eu vô ter que fazer, ué, eu tenho que tá com ele... (M3)

...eu fiquei muito emotiva, a médica passou pra mim tomar uns remédios, mais eu nem tomei, fluoxetina, né, pra me deixar mais tranquila, mais calma, coisa e tal, por causa da agitação do dia a dia... (M4)

...eu consigo me cuidar menos...desde que ele nasceu e, principalmente, depois do diagnóstico eu não consigo mais fazer uma atividade (física) regularmente... (M5)

...a gente vive mais estressada, mais cansada, mais preocupada, né...(M5)

...é como se o cérebro tivesse em alerta o tempo todo, é uma preocupação diária, é...com o dia de amanhã... (M6)

...é, eu comecei a ter crise de ansiedade...eu estou uma capa, não tem celular que trinca e a gente coloca película, eu estou assim (riso nervoso) (M7)

...é uma preocupação todo dia...a questão escolar, a questão de saúde, é muito preocupante pra gente que é mãe... (M9)

Considerando-se os relatos apresentados, pode-se visualizar que a vivência da maternidade atípica é um experimento complexo e desafiador de muitas maneiras. Diante desse contexto, muitas mães vivenciam de forma intensa os cuidados com o filho, se esquecendo, muitas vezes, dos cuidados consigo mesma (Smeha, 2011), fato esse que pode ser observado no relato das mães participantes desse estudo. Sendo assim, a mãe atípica pode renunciar a tudo, menos aos cuidados com o filho com deficiência. Assim, ela cuidará desse filho para sempre (Mannoni, 1999; apud Smeha, 2011, p. 49).

Neste contexto, a segunda subcategoria observada refere-se à rede de apoio, a qual, no geral, é constituída por membros da família. Das mães participantes, somente 2 relataram ter como rede de apoio terapeutas e escola; 2 mães consideraram o marido como rede de apoio, porém há uma discussão importante sobre essa questão já que o marido deveria constituir junto da mãe os cuidadores principais, que dividem as tarefas, tanto em relação aos cuidados e atenção aos filhos, quanto aos cuidados com a casa. Seguem o que algumas participantes relataram sobre as redes de apoio:

...a minha irmã, quando a minha mãe não pode ela vai pra mim...tenho meus irmãos também...meu maior apoio é minha mãe, sem dúvida. (M1)

...essa rede de apoio é minha família, né, meu pai, minha mãe, minhas irmãs... (M2)

Tem o meu marido, me ajuda bastante, né, que ele, também corre com algumas coisas, e eu tenho a minha irmã que ajuda. (M6)

Hoje os familiares ajudam bastante, tipo com comportamento, quando ele tem crise, quando ele tá muito chorão, os familiares ajudam bastante, principalmente minha mãe, meus irmãos que já sabem, a avó do lado do meu marido também...(M8)

Olha, minha rede de apoio se resume na minha sogra, que é maravilhosa, na escola com quem eu conto muito...e o meu marido. (M9)

Apesar do relato das mães serem bem positivos em relação a presença da rede de apoio, essa rede é bem limitada, contando com um apoio bem restrito. Sendo assim, não foi relatado um suporte especializado feito com essas mães, em termos de acolhimento e acompanhamento, afinal as mães atípicas vivenciaram e vivenciam o luto simbólico suscitando em muitos problemas de saúde mental. Neste sentido, a questão mais levantada durante as entrevistas foram as crises de ansiedade, e quando questionadas do porquê elas não procuram uma terapia a resposta foi unânime: falta de tempo.

A segunda categoria deste núcleo, expectativas quanto ao futuro, foi dividida em 2 subcategorias. A primeira refere-se aos desejos para o filho. Muitos foram os momentos em que as mães entrevistadas relataram preocupações em relação ao desenvolvimento e autonomia dos filhos autistas e apresentaram seus desejos em relação aos mesmos. Algumas das respostas apresentadas foram:

Espero que...que meu filho consiga ter uma vida assim, praticamente normal, que ele consiga, sabe, se virá, você sabe, sozinho i...que Deus me permita ficar, assim muito tempo do lado dele... (M1)

...minha maior preocupação maior é como vai sê o desenvolvimento dele... (M2)

Ah eu acho que no meu futuro, a meta de toda mãe é saber que seu filho vai crescer e vai sê independente sabe? (M3)

Ah, esse aí vai sê meu engenheiro (riu muito) porque ele é muito inteligente, tipo assim, eu acho que ele vai sê uma pessoa ainda muito grande, aí no futuro. (M4)

...eu gostaria, é ...de duas coisas principais, né, que o B. se desenvolve, se desenvolvesse não, se virasse sozinho, né, essa é minha grande (choro), minha grande questão (longa pausa), e que tivesse uma maior aceitação assim, da sociedade mesmo, né, que as pessoas, é... acolhessem ele da maneira que ele é... (M5)

... em relação aos meus filhos, que eles se devolverem bem, na, com saúde, é...se desenvolver bem na escola, cada um nas suas habilidades... (M6)

As maiores preocupações é a vida escolar, nesse momento, é, é o que eu sempre penso... (M7)

...que ele tenha uma vida normal...Que eu consiga cuidar do E. (riu) que nem eu estou fazendo, né, buscando o melhor pra ele, todo dia. (M8)

...se a gente tiver condições de levar uma vida tranquila, em termos de acesso à saúde, acesso à educação, como um, o mínimo de inclusão que seja, eu acho que é muito saudável, prum futuro, razoavelmente saudável... (M9)

A partir dos relatos apresentados, é importante destacar que, as dificuldades inerentes às crianças autistas acarretam a mãe atípica incertezas em relação ao seu desenvolvimento e insegurança em relação ao futuro, já que esse se coloca totalmente indefinido (Smeha, 2011). Mais uma vez vamos falar do luto simbólico quando as expectativas da mãe em relação ao desenvolvimento esperado do filho não correspondem à realidade e ela terá que enterrar sonhos e desejos que não serão mais possíveis para aquela nova realidade, aquele novo filho (Smeha, 2011).

Sendo assim, quando falamos em sonhos e preocupações em relação ao futuro dos filhos autistas estamos falando também da aceitação do filho real, afinal antes do diagnóstico as mães tinham um desejo para o filho e um tipo de preocupação e depois do diagnóstico desejos/sonhos e preocupações sofreram um reajuste de acordo com os novas possibilidades e dificuldades que se colocaram, específicas para cada caso. O prognóstico do autismo é tão incerto e tão específico para cada criança que a mãe não sabe o que irá acontecer no futuro, se seu filho irá ou não adquirir essa ou aquela habilidade, o quanto de suporte ele irá precisar, se mais ou se menos do que o atual. Por isso, é difícil para a mãe atípica fazer planos para o futuro e olhar para outros aspectos da sua vida (Smeha, 2011), como sonhar com uma vida profissional ou a retomada da vida social e afetiva.

Na segunda subcategoria, ser mãe (atípica), visualizou-se como estas mães se enxergam sendo mães atípicas, trazendo sentimentos e tarefas que estas acreditam que fazem parte de sua realidade. Quando um casal espera/ deseja ter um filho, eles esperam uma criança saudável e perfeita, nenhum pai ou mãe quer ter um filho com alguma deficiência; “o filho ideal/normal vem para realizar fantasias narcísicas dos pais, porém quando isso não acontece os pais se decepcionam e se fragilizam pois o filho tão esperado e idealizado morreu e agora resta o filho real” (Meira, 1996; Jerusalinzky, 2007 apud Smeha, 2011, p. 44).

Pode-se observar a partir das narrativas das mães entrevistadas que a aceitação do filho real está em construção, ou seja, mesmo tendo todo o conhecimento das inúmeras dificuldades pertinentes às crianças autistas, principalmente relacionadas à autonomia e independência, os sonhos e desejos são embasados em altas expectativas de melhoras muito significativas, o que pode não acontecer. O sentimento que emergiu das mães durante as entrevistas foi de estarem cumprindo uma missão, um sentimento de responsabilização pelo prognóstico. Elas relataram que fazem e farão tudo para a evolução dos filhos e que isso as deixam realizadas e esperançosas.

Transformações físicas e psicológicas atravessam a maternidade. Nesse momento emergem as idealizações e fantasias com o novo bebê. Assim, a mãe almeja um filho perfeito, aceito pela sociedade. Entretanto, aos poucos o bebê real vai crescendo, desenvolvendo-se e aniquilando o bebê idealizado (Simão, 2019). É importante ressaltar que, esse fato acontece em todas as maternidades. Porém, talvez, a maternidade atípica sofra um maior impacto pelo fato de o filho real estar fora dos padrões estipulados pela sociedade como padrões normais. 

Portanto, ao se deparar com esse novo cenário, o filho real, que não corresponde às expectativas de saúde e normalidade criadas pelos pais ou só pela mãe, a família ou a pessoa que cuida terá que encarar o novo, o desconhecido e toda essa nova experiência irá provocar sentimentos como sofrimento, confusão, frustrações e medo, o que torna a função do cuidador, especialmente a função materna, tarefa muito árdua (Smeha, 2011). Ao serem questionadas sobre o que é ser mãe, o que a maternidade representa para elas, as mães entrevistadas ficaram um tanto quanto constrangidas e emocionadas, pois disseram que era muito difícil colocar isso em palavras, algumas tentaram, seguem alguns relatos:

... realizei meu sonho, né, de sê, de sê mãe...um amor puro...eu tendo minha família não precisa, assim de mais nada, que é eles que mi fazem feliz. (M1)

... é o cuidado mesmo, é o cuidado, porque o amor todo mundo já sabe, mas eu acho que é o cuidado... (M2)

É...tudo o foco é eles, né, o melhor pra eles, você tenta fazer tudo do melhor pra eles. (M4)

...eu amo ser mãe, dá pra perceber, né (tem 4 filhos), pro F. (filho autista) eu estou sendo, é mãe, eu estou ensinando, estou dando suporte... (M7)

Complicada (riu), mas é uma, é muito gostoso... mais é difícil viu, principalmente com o espectro do autismo. (M8)

... é muito mais do que eu esperava (riu)... é muito além de se mãe e filho, a maternidade é uma coisa, é difícil, é...posso dizer que é até um pouco solitária, sim, inda mais na questão de uma mãe atípica... (M9)

Desta forma, ser mãe é ser aquela que dá à luz, a mulher que acolherá o filho mesmo sem tê-lo gerado, a mulher que nasceu para cuidar (Iaconelli, 2023), para as mães entrevistadas, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente a resposta compartilhada foi: mãe é dedicação, é cuidar, é promover, é oferecer, é amor.

 

Considerações Finais

Ser mãe, assumir a maternidade com todas as suas questões, é um grande desafio. A maternidade é permeada por muito amor, ou seja, as mães, realmente, amam seus filhos e dariam suas vidas por eles. Porém, hoje muito se discute sobre a escolha de ser mãe, pois toda a escolha gera consequências, e ter um filho é uma das escolhas mais difíceis de se fazer, já que implica em um compromisso de longo prazo e com muita ambivalência, ao mesmo tempo, maravilhoso e assustador (Badinter, 2011). Considerando-se estas questões, é importante ressaltar que a maternidade não é, muitas vezes, o que a mulher deseja ou espera, nem sempre se coloca um bebê saudável e feliz nos braços da mãe, e, mesmo se isso acontecesse, a mulher passa por todos os sentimentos como angústia, alegria, perda de identidade, cansaço, orgulho, sonho e excitação; a maternidade real constantemente é dura e sofrida, o que dirá, então, para mães que não recebem seus bebês lindos e saudáveis nos braços (Gutman, 2009).

Sendo assim, essa pesquisa teve o intuito de identificar se as mães de crianças com autismo vivenciaram o luto pela morte do filho idealizado, quais foram as consequências deste luto e a partir desse ponto observar como se deu a aceitação do filho real. Buscou-se, ainda, visualizar como se deu a aceitação do filho real atravessada pela vivência da maternidade atípica e culminando nas expectativas que essas mães têm para o futuro. Assim, considerando-se a pesquisa realizada, através das ricas narrativas, mesmo numa amostra restrita, pode-se visualizar o que as mães de filhos autistas vivenciaram desde os primeiros sinais de que algo não estava bem, o momento da busca pelo que estava acontecendo, o fechamento do diagnóstico, o pós-diagnóstico e a vivência atual.

Um ponto a ser destacado, é em relação a rede de apoio, que se mostrou ineficiente, já que as mães, em sua maioria, demonstraram exaustão pelo acúmulo de tarefas, responsabilidades e, principalmente, preocupações. Ao serem questionadas, de forma direta, sobre terem ou não uma rede de apoio, ou seja, pessoas dispostas a contribuir com as muitas tarefas cotidianas, todas as participantes responderam, prontamente, que sim, que podiam contar com uma rede de apoio. Porém em outros momentos durante a entrevista foi possível observar, a partir de algumas falas, que a rede de apoio não está presente em todos os momentos e que o acúmulo de tarefas, as atividades com os cuidados do filho autista somado aos outros afazeres com a casa, com o trabalho e com outros filhos (em alguns casos) resultam em uma sobrecarga de funções gerando, principalmente, exaustão e ansiedade.  

Sobre à pergunta de pesquisa do presente estudo, foi possível visualizar que as mães de filhos autistas sofreram o luto pelo filho idealizado. A partir dos relatos pode-se verificar que viveram e em alguma medida ainda vivem o luto pelo filho idealizado. Entretanto este é um luto velado, solitário, não validado e não elaborado, o que gera angústias, sofrimentos e, em certa medida, uma dificuldade em aceitar o filho real, embora todas demonstraram que estão no caminho da aceitação do filho real com todos os seus entraves e atravessamentos. A reflexão que fica é a seguinte, será que a não vivência do luto de forma adequada e esperada pode estar relacionada a aceitação do filho real ainda em construção? Se essas mães tivessem tido espaço para chorar a morte do filho desejado e fantasiado, elas teriam a aceitação completa do filho real, com suas incapacidades e novas possibilidades?

Assim, essa pesquisa não deve encerrar as questões levantadas ao longo de todo o processo, pelo contrário, deve ser um preâmbulo para que outros se interessem por esse tema tão complexo, amplo e necessário. A partir dos resultados obtidos como produto, será possível aprofundar questões relevantes como a extrema necessidade e a eficiência das redes de apoio, pensar qual o papel do pai nessa nova configuração familiar e refletir sobre uma intervenção de acolhimento e desenvolvimento direcionada especificamente para mães atípicas.

 

Referências

 

BADINTER, E. O Conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.

 

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 1. ed. São Paulo: Edições, p.70-277, 2011.

 

BRITES, L.; BRITES, C. Mentes únicas. São Paulo: Editora Gente, 2019.

 

CASELLATO, G. (Org). Luto por perdas não legitimadas na atualidade. São Paulo: Summus Editorial, 2020.

 

CONSTANTINIDIS, T. C. et al. “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de Mães de Crianças com Autismo. Psico-USF, Bragança Paulista, r.23, n.1, p.47-58, jan./mar. 2018. Disponível em https://www.scielo.br. Acesso em: 04 out. 2021.

 

COZBY, P. C.  Métodos de Pesquisa em Ciências do Comportamento. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2003.

 

FREITAS, N. K. Luto Materno e Psicoterapia Breve. São Paulo: Summus Editorial, 2021.

 

FREUD, S. Luto e Melancolia (1917). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

 

GUTMAN, L. Mulheres visíveis, mães invisíveis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009.

 

IACONELLI, V. Manifesto antimaternalista. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

 

MALDONADO, M. T. Psicologia da Gravidez. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2021.

 

MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2013.

 

NOVAES, D. Mãe Raras – Essas mulheres fortes. São Paulo: Pólen Produção Editorial Ltda, 2018.

 

PARKES, C. M. Amor e Perda – as raízes do luto e suas complicações. São Paulo: Summus Editorial, 2009.

 

SIMÃO, M.C.F. A compreensão da psicanálise na vivência do luto materno frente a perda do filho idealizado. 2019. 21f. Trabalho de Conclusão de Curso (artigo). Centro Universitário Dr. Leão Sampaio, Juazeiro do Norte, 2019. Disponível em https://www.unileao.edu.br/. Acesso em: 09 fev. 2022.

 

SMEHA, L. N.; CEZAR, P. K. A Vivência Da Maternidade De Mães De Crianças Com Autismo. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 1, p. 43-50, jan./mar. 2011. Disponível em https://www.scielo.br. Acesso em: 04 out. 2021.


[1]Graduada em Psicologia. Centro Universitário Central Paulista - UNICEP. E-mail: cintiavrmoraes@gmail.com

²Docente do curso de Bacharelado em Psicologia do Centro Universitário Central Paulista – UNICEP. Orientadora do Projeto. E-mail:elipratta@gmail.com

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